Educação

“Tirar a palavra gênero não vai suprimir o assunto na escola”

Para pesquisadora do Núcleo de Estudos de Gênero da Unicamp, escola e família deveriam organizar criticamente mensagens que promovam respeito

Gênero na escola
Gênero
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Conversamos com Regina Facchin, antropóloga e pesquisadora do Núcleo de Estudos de Gênero Pagu da Unicamp sobre a polêmica da retirada da palavra “gênero” dos Planos Municipais e Estaduais de Educação.

Carta Educação
: Como podemos definir gênero? Trata-se de uma construção social?

Regina Facchini: A palavra gênero remete a um conceito, portanto, um construto teórico elaborado no campo científico para compreender melhor determinados fenômenos. Há várias definições para gênero. Vou trabalhar com uma delas aqui, a elaborada pela historiadora Joan Scott, num livro publicado em 1988, uma das mais populares no meio acadêmico brasileiro, especialmente no campo da educação.

Leia Mais | Por que é tão difícil falar de gênero na escola?

De acordo com Joan Scott, gênero é “um elemento constitutivo das relações sociais fundadas sobre as diferenças percebidas entre os sexos” e também “um modo primordial de dar significado às relações de poder”.

Note bem, o conceito remete a relações sociais de poder, especialmente ao modo como diferenças corporais entre homens e mulheres são percebidas socialmente e como podem ser, e infelizmente o são com frequência, convertidas em desigualdades. É um conceito cunhado dentro de uma perspectiva: aquela que entende que diferença não é, e não deveria ser, sinônimo de desigualdade. Tomar a presença de dadas características anatômicas ou fisiológicas como base para inferiorizar seres humanos ou para traçar seu destino na vida social é algo que se constrói socialmente. A questão é que construções sociais são fatores muito importantes na produção de quem somos, vemos o mundo e agimos nele e não são algo passível de mudança rápida ou por intencionalidade individual. Tomemos por exemplo outra questão que gera desigualdades sociais e situações de violência, o racismo. Basta pensar que desde os movimentos abolicionistas que lutavam contra o trabalho escravo de negros no Brasil temos lutado contra o racismo e que, apesar disso, dados como os que indicam altos índices de morte violenta entre jovens ou os menores níveis de emprego e renda entre negros esfregam na nossa cara o tempo todo que o racismo está aí, mais firme e forte do que gostaríamos.

CE: Como começa o preconceito e discriminação por gênero: em casa, nos desenhos, na televisão, em sala de aula?

RF: O aprendizado sobre os significados de ser homem ou ser mulher, sobre o que é próprio ou adequado para homens e para mulheres, está disponível por toda parte. Os pais, coleguinhas no bairro ou na escola, tevê, vizinhos, professores, parentes, pessoas que não conhecemos, profissionais de saúde, livros, internet, igrejas, tudo ao nosso redor pode nos fornecer conteúdos e mensagens sobre o que é adequado e possível de esperar em relação a homens ou a mulheres. Essas mensagens podem ser mais ou menos adequadas, visto que boa parte delas não é emitida com a finalidade de ensinar algo. Mas acabam ensinando. Mensagens que hierarquizam os sexos, que desvalorizam mulheres, que perpetuam desigualdade ou estimulam a violência podem estar em qualquer lugar. Mensagens que valorizam um olhar mais igualitário para homens e mulheres e estimulam o respeito também. Mas se nossa sociedade tem altos índices de violência contra mulheres, se as mulheres têm menos acesso a emprego e a renda, se mesmo quando estudam mais ganham menos, é porque mensagens discriminatórias e violentas possivelmente estão por toda parte e, possivelmente, muito mais frequentes acessíveis do que as que promovem o igualitarismo e o respeito.

CE: Em sua opinião, cabe ao professor, a escola e o plano de educação desenvolver um trabalho intencional sobre gêneros? Ou gênero e orientação sexual se ensinam em casa?

RF: É exatamente por vivermos numa sociedade tão desigual em termos de gênero e pela maior probabilidade de as mensagens disponíveis sobre homens e mulheres serem marcadas por preconceitos e por elementos que estimulam discriminação e violência é que é legítimo e importante que um espaço comprometido com a formação para a cidadania e para a vida em sociedade, como é a escola, desenvolva um trabalho intencional de formação para a igualdade e o respeito.

Se a escola vai desenvolver esse trabalho, é fundamental que ele seja planejado, que haja preparo para isso. Não basta atribuir a incumbência ao professor.

É preciso formação, é preciso suporte institucional, é preciso diálogo com a comunidade escolar e é preciso um diálogo com as pessoas interessadas na educação e aquelas que produzem políticas públicas de educação. A questão sobre ensinar em casa ou na escola é uma falsa questão. Parte do pressuposto de que se ninguém ensinar intencionalmente, a criança ou o adolescente não aprenderão nada. Em todo lugar, o tempo todo se pode receber mensagens sobre como homens e mulheres devem ser, sobre como devem ser tratados, sobre o que se pode esperar deles. O que a escola ou a família podem e deveriam fazer é tomar o trabalho intencional de ajudar a entender e organizar criticamente essas mensagens, separar o que leva ao respeito e o que leva à discriminação e à violência. E o ideal mesmo é quando podem fazer isso juntas. Além disso, orientação sexual não é algo que se possa ensinar a alguém. O que família, escola ou outras instituições podem oferecer intencionalmente são informações sobre o exercício da sexualidade, com foco na saúde, no respeito ao outro e no respeito a si mesmo. Isso não é ensinar uma ou outra orientação sexual e não é passível de conformar ou direcionar intencionalmente o desejo sexual de alguém.

CE: Como vê a polêmica em torno dos PMEs (Planos Municipais de Educação), que estão seguindo o mesmo caminho do PNE, retirando menções sobre igualdade de gênero, para conseguirem ser aprovados?

RF: Penso que isso acaba por colocar os profissionais na escola em posição mais difícil e vulnerável. Os casos que chegam à escola e demandam atenção, como violência física, psíquica ou sexual no âmbito doméstico, gravidez não planejada e indesejada, discriminação e violência no âmbito da própria escola, não desaparecerão num passe de mágica. O que pode desaparecer são as ações governamentais na direção de preparar e oferecer orientações a profissionais que trabalham na educação para enfrentar essa realidade.

É ilusório imaginar que tirar palavras como gênero, diversidade, orientação sexual ou identidade de gênero de planos que preveem metas e ações para políticas de educação vai suprimir esses assuntos do universo escolar ou das salas de aula.

O que sai dos planos é a previsão de investimento governamental nesse trabalho intencional de educar para a igualdade de gênero, dado que os planos deixam de prever e indicar essa necessidade. Além disso, perde a população como um todo: junto com o termo gênero, foram retirados dos planos municipais em várias localidades vagas em creches, escola em tempo integral, garantias de melhor atenção a deficientes físicos outras questões. É preciso que educadores e toda a população fique muito atenta a quando se cria muito alarde em torno de algo divulgado como ameaça moral, pois essas situações, por sua capacidade de mobilizar pelo escândalo, têm sido utilizadas como forma de desviar a atenção de procedimentos que subtraem direitos à população como um todo.

CF: Por que é tão difícil falar de igualdade de gênero entre homens e mulheres ou mesmo de diferentes identidades de gênero em políticas públicas no Brasil?

RF: O que preocupa nessa polêmica toda da supressão de termos como gênero e orientação sexual dos PMEs é o crescimento da expressão pública de mensagens claramente conservadoras. Têm se multiplicado discursos públicos que naturalizam a subalternidade ou inferioridade das mulheres, que associam homossexualidade ao âmbito do que é considerado patológico (mesmo contrariando o que é reconhecido por associações científicas internacionais de psiquiatria ou órgãos como a Organização Mundial da Saúde) e/ou que desvalorizam, ridicularizam ou retratam como moralmente ameaçadoras iniciativas intelectuais ou políticas de combate a desigualdades.

Ditos em alto e bom som por autoridades políticas e/ou religiosas, tais discursos fazem com que cidadãos se sintam autorizados e reforçados na manutenção e expressão de seus preconceitos.

Isso significa um futuro com muito mais mortes, pessoas adoecendo, se suicidando e em situação de miséria e exclusão motivadas por violência envolvendo questões relacionadas a gênero e sexualidade.

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