Educação

Por que é tão difícil falar de gênero nas escolas?

Educadores condenam retirada de menções a gêneros nos planos estaduais e municipais de educação

Manifestantes protestam contra retirada de gênero dos Planos Municipais de Educação
Manifestantes protestam contra retirada do termo "gênero" do plano de educação Protesto
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Não dá para dizer que não se tentou.

O próprio Plano Nacional de Educação (PNE) aprovado em 2014, responsável por definir metas para o período de dez anos do Ensino Básico ao Superior, buscou lutar contra a discriminação ao promover a equidade de gênero e difundir propostas pedagógicas sobre sexualidade.

Leia Mais | “Tirar a palavra gênero não vai retirar o assunto da escola”

Eram 35 menções a estratégias relacionadas à identidade de gênero e orientação sexual que deveriam ser de responsabilidade da União, dos estados e municípios na redação do Projeto de Lei, que acabou tendo de limá-las para ser aprovado no Congresso Nacional.

Quase um ano depois de o desenho da política pública sucumbir ao lobby conservador e religioso, o País assiste hoje a um drama semelhante.

Protestos de diferentes denominações vêm condenando aquilo que mal parecem entender.

Parlamentares e ativistas de igrejas católicas e neopentecostais estão conseguindo derrubar quaisquer referências a gênero de Planos Municipais de Educação (PMEs) e Planos Estaduais de Educação (PEEs), sob o argumento de que esses estariam destruindo o papel da família em educar seus filhos.

São Paulo, Londrina, Maringá, Maceió, Fortaleza e Sorocaba são alguns dos exemplos de cidades que tiveram seus PMEs decepados para ser aprovados.

No caso da capital paulista, por exemplo, foram retirados os pontos sobre “denúncias de violências e discriminações de gênero e identidade de gênero, raça/etnia, origem regional ou nacional, orientação sexual, deficiências, intolerância religiosa”, “ações contínuas de formação da comunidade escolar sobre sexualidade, diversidade, relações de gênero e Lei Maria da Penha”.

Também foram eliminadas: “propostas pedagógicas que incorporem conteúdos sobre sexualidade, diversidade quanto à orientação sexual, relações de gênero e identidade de gênero”, assim como ampliar a formação de profissionais, a fim de superar “preconceitos, discriminação, violência sexista, homofóbica e transfóbica no ambiente escolar”.

Derrubado por 7 votos a 1, portanto, o plano segue os passos do PNE, eliminando do texto final o que a Casa chamou de “leitmotivs clássicos da ideologia de gênero”. Além dos PMEs, oito estados tiveram de modificar o texto de seus PEEs sob pressão das bancadas religiosas.

Mas por que é tão difícil falar em equidade entre homens e mulheres ou mesmo entre diferentes identidades de gênero em políticas públicas?

Único voto a favor da manutenção dos trechos referentes a gênero no PME na Câmara de São Paulo, o vereador Paulo Fiorilo (PT) aponta a necessidade de um encaminhamento diferente para os planos municipais.

“Já tivemos esse problema no debate nacional. Precisamos entender o que está acontecendo para enfrentar o municipal”, diz sobre uma nova estratégia diante da baixa expectativa para os PMEs e PEEs após a modificação no PNE.

“Por uma visão de determinada parcela da Igreja, a gente não teve oportunidade de fazer um debate mais amplo. Se houvesse entendimento de que não há a intenção de dar ao adolescente a opção se ele vai ser homem ou mulher, talvez as menções a gênero tivessem permanecido. Vejo com muita surpresa a posição desses grupos, primeiramente por conhecer a Igreja Católica e saber de seu compromisso contra a discriminação, o preconceito e a desigualdade.”

As contradições que demonstram grupos ligados à Igreja – a CNBB, por exemplo, declarou que “a introdução dessa ideologia na prática pedagógica das escolas trará consequências desastrosas para a vida das crianças e das famílias” – também surpreende a especialista Jane Felipe Souza, coordenadora da pesquisa Violências de Gênero, Amor Romântico e Famílias: Entre Idealizações e Invisibilidades, Os Maus-tratos Emocionais e A Morte, do programa de pós-graduação em educação da UFRGS.

“Trata-se de religiões que deveriam primar pelos direitos humanos, pelo amor ao próximo, pelo respeito ao outro. E são justamente elas que se colocam contra a promoção desses valores”, condena. “O que percebemos é uma profunda ignorância desses grupos sobre o que estão chamando de ‘ideologia de gênero’. Não sabem o que estão falando. Aí pegam essa massa de manobra que nunca estudou os conceitos para protestar nas Câmaras.”

A pesquisadora lamenta que alguns legisladores se mostrem “truculentos” quando deveriam ter certo preparo e lembra: as crianças possuem sexualidade e identidade, então é papel da escola também discutir questões de gênero em qualquer disciplina.

Mas, afinal, o que é gênero?

Membro do Laboratório de Psicologia Escolar e Educacional da UFSC, Marivete Gesser explica que “gênero pode ser caracterizado como uma construção discursiva sobre nascer com um corpo com genitália masculina ou feminina” e, por meio de normas sobre masculinidade e feminilidade, vamos nos construindo como sujeitos “generificados”.

“O preconceito de gênero está relacionado a esses discursos sociais que naturalizam lugares sociais para homens e mulheres, bem como patologizam aqueles com comportamentos diferentes dos esperados socialmente.”

Segundo a professora do programa de pós-graduação em Psicologia da UFSC, o preconceito de gênero atravessa todas as instituições sociais: família, escola e Estado, justificando uma ampla discussão em políticas púbicas de educação, saúde, justiça e assistência social.

“A escola tem sido um espaço privilegiado para se discutirem essas questões e os professores têm sido atores importantes no combate às desigualdades. Por isso vejo como grande retrocesso a retirada das menções relacionadas à igualdade de gênero de documentos como o PNE e PMEs. Quando se discute a questão de gênero por uma perspectiva desconstrutora dos padrões dominantes de masculinidade e feminilidade, contribui-se para a diminuição da homofobia, inclusive.”
Professora há 25 anos do Centro de Educação Infantil Vila Salete, na zona leste de São Paulo, Mirtes de Oliveira Croques conta que muito do preconceito percebido em sala de aula é oriundo da própria família.

Ela lembra o caso de um aluno de 3 anos que, ao chegar à escola, ia direto brincar com bonecas, mas sempre era repreendido pela avó, que o trazia.

“De tanto ela dizer: ‘Não vai para o canto da boneca, porque é brinquedo de menina’, ele acabou indo para outro. Aquilo foi me incomodando. Coitado”, conta sobre o menino que também falava em “cor de menino” e “cor de menina”, cuja mãe fazia questão de deixar claro nas reuniões que seu filho não gostava de bonecas.

O caso foi levado para a coordenação do CEI, que, entre maio e setembro de 2014, promoveu o projeto Gêneros, no qual textos sobre o tema eram discutidos entre o corpo docente e depois enviados para os pais tomarem conhecimento.

Ainda que não existam grandes diferenças de gênero no que diz respeito ao acesso à educação.

Pesquisa feita entre o MEC, o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep) e a Diretoria de Estatísticas Educacionais mostra que dos 49.771.371 matriculados em diferentes níveis da Educação Básica em 2014, 24.620.520 eram do sexo feminino e 25.150.851 do sexo masculino – há diferenças entre meninos e meninas heterossexuais, homossexuais e transgêneros, que podem vir a ser verdadeiras barreiras geográficas, com divisões e rivalidades dentro da escola.
Kátia Regina Pupo, coordenadora do Colégio Miguel de Cervantes, na zona sul de São Paulo, acredita que o papel da escola é trabalhar para que essas diferenças não sejam transformadas em desigualdades.

“É importante discutir gênero na escola não para negar ou mostrar outras possibilidades, mas para promover o respeito à diversidade, o que vem juntamente com questões como a étnica racial. Não se trata de ensinar a criança a ser assim ou assado, mas fazer com que ela respeite quem é diferente e possa entender que as pessoas têm outras escolhas”, afirma a mestre em educação pela USP, cuja dissertação tratou da Violência Moral Dentro da Escola.

Até o momento, os únicos que parecem ter tido sensibilidade para o tema na hora de votar o PME foram os vereadores de Pelotas, no Rio Grande do Sul.

No fim de junho, a Câmara conseguiu aprovar o plano mantendo as menções a gênero, apesar da distribuição de panfletos por evangélicos durante a sessão e protestos contrários à aprovação do texto. Um ponto fora da curva entre a série de medidas endurecedores que o País vivencia hoje.

Enquanto o vereador paulistano Paulo Fiorilo acredita que os protestos contrários à manutenção dos trechos sobre gênero no PNE e nos PMEs seja parte de um movimento de direita que ganha força em temas como a redução da maioridade penal e o movimento de alguns deputados contra a parada gay, por exemplo, Kátia Regina vê a intromissão de grupos religiosos e conservadores na educação como algo maior, ainda em desenvolvimento:

“Não se trata da questão de gênero especialmente. A gente vive uma onda de conservadorismo geral, que tem feito alguns estragos. Esse é apenas um deles”.

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