Educação

Proinfância e a dificuldade de construir creches no Brasil

Programa cria investimento inédito em construção de creches, mas se choca com a baixa capacidade dos municípios para executar obras

Programa Nacional de Reestruturação e Aquisição de Equipamentos para a Rede Escolar Pública de Educação Infantil (Proinfância)
O baixo ritmo de execução das obras ameaça o cumprimento do PNE. proinfancia creches criança fila escola governo pne
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Dilma Rousseff foi eleita em 2010 tendo como uma de suas bandeiras eleitorais a construção de 6 mil creches por meio do Programa Nacional de Reestruturação e Aquisição de Equipamentos para a Rede Escolar Pública de Educação Infantil (Proinfância), instituído em 24 de abril de 2007. Chefe da Casa Civil à época, Dilma viu seu antecessor, Luiz Inácio Lula da Silva, firmar convênios para a construção de 2.285 creches, das quais somente 22 foram entregues até a passagem da faixa presidencial. Um problema do qual não estaria livre durante seu primeiro mandato, e que resultou em cobranças de seus adversários durante as eleições do ano passado.

O Proinfância é um caso típico de “copo meio cheio, copo meio vazio”. De um lado, os recursos empenhados em volume inédito e as metas ambiciosas. De outro, o baixo número de unidades entregues opera como uma realidade frustrante para quem imaginava ver o déficit de creches resolvido há muitos anos. A origem dos problemas não guarda originalidade. A lentidão das obras geridas pelos municípios é apontada como o principal obstáculo no caminho do programa, um problema comum a várias iniciativas federais de repasse de verbas surgidos nos últimos anos. A baixa capacidade administrativa e a falta de quadros qualificados do ponto de vista da competência burocrática servem como uma parede contra a qual todas as projeções de entrega se chocam – e sempre saem perdendo.

O ritmo baixo de execução ameaça o cumprimento do Plano Nacional de Educação (PNE), que prevê universalizar o acesso escolar de crianças de 4 e 5 anos até 2016. Apesar dos tropeços, a iniciativa é saudada como um passo inédito para levar a educação básica a um novo patamar de relevância no planejamento público. “O direito da criança à educação é universal e um dever do Estado. Quem tem de garantir esse direito é a nação, então, o governo federal forçou um pouco mais o diálogo, ele expôs que os entes federativos devem estar juntos”, afirma Vital Didonet, assessor da Rede Primeira Infância e ex-coordenador de educação básica do Ministério da Educação (MEC).O objetivo maior do programa é fomentar a criação de vagas na Educação Infantil por meio do financiamento de novas obras e reformas, o que inclui ainda a aquisição de mobiliário para as unidades construídas. Somente a partir de 2011, com Dilma eleita, houve a inclusão do Proinfância no Plano de Aceleração do Crescimento (PAC2), com orçamento previsto de 7,6 bilhões de reais. O montante envolvido tem como função resolver uma das grandes queixas de prefeitos e secretários: os municípios não têm condições de arcar com as obras necessárias nesta e em outras áreas.

A demanda gigantesca por creches no País – são quase 10 milhões de crianças de 0 a 3 anos fora da escola, segundo dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) – indica que o programa é um meio, e não um fim, constatação reforçada pelo balanço mais recente, divulgado no começo de março pelo Ministério da Educação (MEC), que indica que foram investidos R$ 10 bilhões e contratadas 8.787 creches pelo país desde 2007. Dessas, 2.533 estão concluídas e 3.989 em obras. Sobram, portanto, 2.265 que ainda não saíram do papel. Mesmo que todas as unidades autorizadas para construção estivessem prontas, seriam insuficientes para garantir a universalização prevista no PNE. Segundo o Observatório do PNE, mantido por organizações não governamentais, 87,9% das crianças entre 4 e 5 anos estão matriculadas regularmente. Os 12,1% restantes sugerem que o objetivo está perto de ser alcançado. Mas nem tanto.Maria Thereza Marcílio, gestora institucional da organização Avante, ressalta que a iniciativa federal tem sido importante na melhoria da qualidade da educação infantil. “Alguns dos entraves do Proinfância não estão no Proinfância, mas no pacto federativo”, avalia a gestora. “Repassar dinheiro federal para um município tem condicionantes necessárias, porque é muito dinheiro, mas, da forma como o país está estruturado, isso cria problemas que talvez tenham sido ignorados, ou minimizados quando do lançamento.”

Vital Didonet segue a mesma linha argumentativa. Ele entende que um dos defeitos do programa no nascedouro foi não ter levado em conta a diversidade regional no planejamento arquitetônico das creches, um debate que poderia também ter forçado um vínculo mais firme das administrações locais com o programa. “Foi uma decisão que necessitava de um planejamento conjunto com os municípios. O diálogo levaria a um planejamento diversificado”, pondera.

Para receber os recursos do Proinfância, o município se compromete a dar uma contrapartida local ao financiamento recebido, o que inclui o terreno e, posteriormente, a manutenção do espaço. O valor é orçado pela prefeitura para facilitar as licitações e considerar as variações de preço das diferentes regiões. O Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE), que repassa e administra os recursos do projeto, optou, em 2013, por “metodologias inovadoras de construção” dos prédios (com a definição de requisitos técnicos de estruturas pré-moldadas) e realizou uma licitação nacional por “ata de registro de preços”, com objetivo de acelerar e baratear o processo.

Mas não é sempre que funciona. Em Buritirama, município baiano de 19,6 mil habitantes, o anúncio da construção em agosto do ano passado previa quatro meses para a finalização da creche, mas, segundo o secretário de Educação, Geraldo da Cruz Junior, a empresa só fez o muro da obra. Ele explica que a prefeitura doou o terreno e fez topografia, aterro e compactação, mas a empresa MVC-Soluções em Plásticos “simplesmente sumiu”. “A gente tem tentado contato sem sucesso”, diz. A regra vale para todos: os recursos obtidos pela prefeitura de Buritirama, de 1,2 milhão de reais, não são repassados integralmente, mas em partes, mediante a conclusão de etapas da obra. “A gente só pagou o que eles fizeram, entendeu?”, diz o secretário, um tanto pessimista com a situação das mais de 200 crianças que seriam beneficiadas com o espaço.

Segundo ele, o MEC ainda não foi informado da situação e a obra consta como “paralisada” no Sistema Integrado de Monitoramento, Execução e Controle do ministério. Em seu site, a MVC-Soluções anuncia que fará a entrega até o fim deste ano de 128 novas creches do programa em vários estados da Região Nordeste. Procurada por Carta Fundamental, a empresa não prestou informações.

Como forma de coibir esses problemas, desde maio o MEC e o FNDE têm autorizado os municípios a licitar diretamente as creches aprovadas. Segundo o FNDE, “essa reformulação do processo é fruto de diálogo com dirigentes municipais e secretários de educação de todo o país”. Uma alteração que poderia ter evitado o problema de Buritirama. “Quer dizer, praticamente empurrou goela abaixo para os municípios, não? Quando o município faz, é outra situação. Tanto que agora mudaram”, afirma o secretário de Educação da cidade baiana. A partir de agora, além disso, o FNDE oferecerá dois novos modelos de plantas que poderão ser escolhidos de acordo com a necessidade de cada local, e há uma promessa de melhoria no diálogo diretamente com prefeitos e dirigentes da área.

Maria Thereza Marcílio vê com bons olhos a mudança, embora prefira esperar pelos desdobramentos. “É uma tentativa de descentralizar.” Isso tende a melhorar, ela diz, mas avalia que a própria licitação não é tão simples porque nem todos os municípios têm condições de fazer. “Tem alguma coisa que é da forma como o país se organiza que está para além do Proinfância. O programa apenas revela essa dificuldade”, diz.

Apesar de importantes, as obras são apenas o primeiro passo. Manter as creches é a outra grande preocupação dos dirigentes municipais. “A gente sabe que a creche é mais cara do que os outros níveis. Tem que colocar fralda, alimentação, o número de crianças por professor é menor, é período integral, tem os materiais, então, não dá para calcular do mesmo jeito que o Ensino Fundamental”, explica Didonet.

O FNDE já repassa recursos para os municípios que atendem crianças em creches. O valor por aluno (quase 1,5 mil reais para quem estuda meio período) cresce 50% quando a criança é beneficiária do Programa Bolsa Família. Mas, mesmo assim, para muitos municípios, os recursos são insuficientes.

Em Nerópolis, Goiás, a secretária de Educação, Rejane Cátia Moreira, no cargo há dois anos e meio, conta que a cidade tem quatro creches – duas geridas pela prefeitura, duas por organizações sociais. No total, são 400 alunos. Além disso, há uma unidade em construção, com previsão de conclusão neste ano.

“A empresa contratada deu muitos problemas. Ela é do município e nunca havia feito construção de grande porte. Quase entrou em falência. Agora é que voltou a construir”, comenta. Para atingir a meta do PNE, a cidade precisará de mais creches. Já existe um terreno escolhido para a construção da próxima, e o município pretende, em breve, entrar com o pedido de recursos federais. Sem ajuda orçamentaria, explica a secretária, não há condições de cumprir os objetivos firmados. “Creche tem um custo alto, mas está dentro das possibilidades do município, desde que a gente tenha repasse federal”, avalia.

No ano passado, a cidade passou a receber dinheiro do Brasil Carinhoso, um dos principais programas de Dilma em seu primeiro mandato, que centraliza as políticas de auxílio à primeira infância. “O que poderia mudar são as orientações para o gasto dos recursos. Nós, que temos contato com a realidade local, sabemos onde precisa ser gasto. Mas a gente não tem liberdade porque o recurso vem com um fim específico”, argumenta Rejane.

O secretário de Educação do município de Jauru, em Mato Grosso, Nilton Fernando Lucato, relata que a cidade tem desde 2012 uma creche construída com recursos do Proinfância e que a cidade pretende erguer mais duas até o fim do ano. “Já temos o terreno, falta só o dinheiro”, diz Lucato, que prevê a necessidade de 600 vagas para atingir as metas do PNE. Para ele, com caixa próprio o município não tem condição de construir creche. “A relação com o governo federal é boa. O sistema funciona muito bem”, avalia.

No entanto, o Tribunal de Contas da União (TCU) não é tão otimista quanto o secretário Lucato. Em auditoria publicada no final de setembro do ano passado, o órgão apontou falhas no programa que atrapalham seus objetivos. São problemas como bibliotecas e salas de leituras sem livros, laboratórios de informática entregues sem computadores. Há também falhas estruturais arquitetônicas no programa. Por exemplo, há projetos de creches para o clima quente de uma determinada região do País que são exportados para outras regiões mais frias, sem as devidas adaptações necessárias.

O TCU fiscalizou 44 creches em seis cidades. “Em todos os municípios fiscalizados foram identificados serviços com qualidade deficiente, resultantes da execução; e do projeto-padrão utilizado. Também foram constatadas situações de obras paralisadas ou com baixo ritmo de execução”, aponta o relatório.

“Divergências de custos entre a planilha orçamentária e o projeto atingem somas consideráveis de recursos ao serem multiplicadas pelo número de empreendimentos”, acrescenta o documento. O tribunal ainda criticou o fato de o FNDE não acompanhar as obras in loco. O órgão se baseia unicamente em fotografias enviadas pelos municípios ao Sistema Integrado de Monitoramento, Execução e Controle do MEC.

Após o relatório, o FNDE se comprometeu a revisar um dos projetos-padrão e a elaborar um plano para mitigar os efeitos de obras paradas ou lentas, além de apresentar uma proposta de fiscalização in loco e pensar em como evitar desvios de recursos da conta do programa para as contas gerais do município.

Outro órgão federal, a Controladoria-Geral da União (CGU), tem realizado ações de controle no Proinfância por fiscalização por amostragem. Em algumas ações realizadas, foram constatados problemas com o uso da verba federal. O município de Ponte Alta do Tocantins, por exemplo, recebeu 1,3 milhão de reais para a execução da obra da creche do Proinfância.

A vistoria da CGU no local, no entanto, apontou indícios de fraude. Segundo a Controladoria, a empresa vencedora da licitação recebeu pagamento de serviços não realizados no montante de 316 mil reais, o que corresponde a 23,74% do valor total pago. Além disso, o relatório da CGU concluiu que a obra estava inacabada, com fios expostos, infiltrações no teto, portas quebradas, falta de quadro de luz e janelas. Isso não impediu que o município inaugurasse a creche, colocando “em risco a segurança das crianças e funcionários, sobretudo pela não instalação do sistema de combate e prevenção de incêndio”, diz o órgão.

Procurados pela reportagem para tratar de avanços e retrocessos do programa e comentar suas perspectivas, MEC e FNDE repassaram responsabilidades um ao outro, sem entregar nenhuma resposta. Em 2013, Dilma discursou na inauguração de uma unidade do Proinfância em Minas Gerais. Disse que a creche é como o primeiro tijolo, que vai sendo construído até a pós-graduação. “Aqui, começa aquele menino que vai virar físico nuclear, aquela outra que vai ser presidenta da República.”

O Proinfância, segundo Maria Thereza Marcílio, precisa de mais tempo. E de muitas melhorias. “O senso comum e a mídia precisam entender que educação não é investimento de curto prazo. Então, oito anos é muito pouco para avaliar e dizer que não funcionou”, diz. Por outro lado, ela afirma, as crianças não esperam. “É o único segmento que não tem supletivo. Educação Infantil, ou faz na infância, ou não faz. É lamentável que muitas crianças não tenham essa oferta, mas, que temos avançado muito, não tenho a menor dúvida”, finaliza.

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