Educação

A universidade da integração

Unila recebe 83 haitianos e aumenta para 12 o número de nacionalidades entre estudantes

Calouros da Unila
Programa Pró-Haiti atende população de país atingido por terremoto em 2010 unila haiti pró-haiti integração
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O nome da Universidade Federal da Integração Latino-Americana (Unila) se traduz em prática nas salas de aula, restaurantes, moradias estudantis e espaços ocupados pela instituição em Foz do Iguaçu, no Paraná. Metade dos alunos é composta por estrangeiros: há argentinos, uruguaios, paraguaios, chilenos, bolivianos, peruanos, equatorianos, colombianos, venezuelanos e salvadorenhos. A partir de 2015, haitianos também se juntarão ao diverso grupo.

Os oriundos da ilha caribenha devastada por um terremoto em 2010 ingressaram por meio do Pró-Haiti, programa desenvolvido pela universidade especialmente para haitianos que vivem no Brasil. “Fizemos uma seleção separada do restante por entender que eles precisam de mais acolhimento e auxílio”, afirma a pró-reitora de Relações Institucionais e Internacionais, Gisele Ricobom.

Ao todo, 83 haitianos foram aprovados. O número é pequeno em comparação com os 20 mil que chegaram ao Brasil (regularmente ou como refugiados) nos últimos quatro anos, mas o suficiente para representar o maior programa brasileiro de inclusão em Ensino Superior para essa população.

O número também é bastante significativo dentro da Unila. Ao mesmo tempo que é tão diversificada, a universidade, criada em 2010, tem apenas 2.230 alunos em 41 cursos. A vizinha Universidade Federal do Paraná (UFPR), por exemplo, têm 38,5 mil alunos. Já a Universidade de São Paulo (USP), 58 mil estudantes só na graduação. O contingente na Unila foi engrossado em 2014 – antes disso, eram apenas 1,4 mil estudantes matriculados em 17 cursos. As duas primeiras formaturas, no primeiro e segundo semestres do ano passado, totalizaram 91 formados.

Pensada originalmente para ser uma universidade internacional mantida por diferentes governos, a Unila acabou bancada apenas pelo Brasil. Com a redução dos recursos, as obras do campus oficial estão paradas por problemas de licitação. As atividades espalham-se por cinco prédios alugados e concentram-se no Parque Tecnológico de Itaipu, um centro de pesquisa da usina hidrelétrica.

“Nossa maior riqueza é a convivência com tanta diversidade de origens. É um aprendizado constante de vida para todos, inclusive para nós, professores”, afirma a pró-reitora. Os docentes também são oriundos de 14 países diferentes, incluindo visitantes da Europa e África.

Os cursos incluem carreiras tradicionais como Medicina, Engenharia, Arquitetura e Urbanismo. Há também áreas em que a integração é um diferencial da universidade, como Relações Internacionais e Economia. No rol de cursos oferecidos pela universidade estão aqueles nascidos das necessidades latino-americanas, como História voltada para a América Latina, Saúde Coletiva, que pretende formar um profissional próximo ao médico generalista, e Licenciatura em Ciências da Natureza – agrupando conteúdos de Biologia, Física e Química como ocorre no Exame Nacional do Ensino Médio (Enem).

As aulas são ministradas em português ou espanhol, de acordo com a origem do professor. Para não se tornar uma verdadeira torre de babel, a instituição impõe um currículo comum de um ano e meio a todos os ingressantes que inclui o idioma português para os estrangeiros e espanhol para os brasileiros. Como optativo, também se pode aprender línguas indígenas faladas nos países de origem de alguns alunos, como quéchua, guarani e aimará. “A barreira do idioma é mais vista nos primeiros meses. Depois disso, as pessoas se compreendem muito bem mesmo que cada uma continue falando na sua língua”, conta Gisele.

A chegada de cidadãos do Haiti, em que se fala crioulo e francês, será um novo desafio. Por isso, as vagas foram oferecidas apenas aos residentes no Brasil, já falantes do português. “A verdade é que por aqui se fala portunhol”, diz o haitiano Mondesin Getho, 25 anos.

Matriculado em Saúde Coletiva, ele pensa em realizar no Brasil o sonho de ser médico, germinado em muitos haitianos diante das mais de 200 mil mortes causadas pelo abalo do terremoto. “Vimos muita gente sofrendo no meu país. Ainda se vê e tudo que quero é saber como ajudar. Sempre penso que podia ter salvo vidas ali”, afirma.

Ele chegou a ingressar no curso de Medicina na Universidade do Estado do Haiti em 2012, mas conta que o terremoto também desmontou o sistema de ensino superior da ilha. “A carência lá é de tudo: gente, material e até emocional. Preferi sair e buscar uma formação para poder voltar e trabalhar pelo país”, conta.

A primeira opção que avaliou para estudar medicina no exterior foi a vizinha Cuba, mas a oportunidade de conhecer uma cultura diferente o trouxe para o Brasil. Embarcou em 31 de dezembro de 2013 na capital haitiana, Porto Príncipe, e chegou em São Paulo em 1º de janeiro de 2014. Obstinado, procurou emprego nos hospitais paulistas e explicou que gostaria de aprender a lidar com “pessoas que precisam de atendimento urgente”. Acabou conseguindo um emprego no Hospital do Coração como motorista de ambulância.

“Trabalhei e estudei para o vestibular durante o ano. Passei na primeira fase e estou na lista de espera da USP, mas quando cheguei à Unila vi que posso levar uma bagagem maior do que o diploma e a língua portuguesa do Brasil”, conta.

Ele agora espera o início das aulas para se certificar de que Saúde Coletiva é, como lhe disseram, a alternativa ao curso tradicional de Medicina. “Se for para atender quem mais necessita, é o que mais quero. Se não, preciso mudar para ser médico”, diz, ainda incerto de onde estudará, mas seguro de que atingirá o objetivo.

Mondesin é um haitiano privilegiado. Não perdeu familiares no terremoto e conseguiu viajar para o Brasil com suas próprias economias. Entre os alunos, é comum quem tenha ficado sem parentes próximos e chegado a território brasileiro por falta de opção, como Ricardo Turelian, matriculado em Engenharia de Materiais.

Ele tinha 18 anos quando o terremoto ocorreu. Entre as vítimas estava sua mãe e um de seus irmãos. Morou com outros 3 milhões de desabrigados – um terço da população total do país – até 2013, quando uma ação humanitária permitiu a entrada de refugiados pelo Acre. “A nossa história é a tragédia que o mundo viu. O que pouco se sabe é que também somos muito lutadores, sonhadores e gostamos muito de estudar”, conta.

Ainda em 2013, mudou-se para Uruguaiana no Paraná. Fez um curso de pedreiro e começou a trabalhar no setor. “Espero conseguir aqui na Unila uma profissão e também conhecimento de mundo. Sempre quis viajar e conhecer culturas. Aqui acho que vou aprender sobre muitos países enquanto me formo.”

A uruguaia Nastasia Valentina Barcelo Severgnini, 29 anos, formada na primeira turma de Relações Internacionais, concorda que o aprendizado extracurricular é o grande diferencial da instituição. Ela começou o estudo superior na Universidade de Montevidéu, no Uruguai, e mudou para a Unila quando a instituição foi inaugurada, em 2010. Ao saber da chegada dos haitianos, ficou feliz e pensou que mais adaptações serão necessárias a todos os alunos.

“A parte mais linda da Unila é receber gente de culturas completamente diferentes. E essa é a parte mais difícil também. Os debates são muito acalorados”, afirma. No seu caso, conta, foi difícil se acostumar ao machismo, violência e religiosidade de estudantes de outros países. “O Uruguai é mais moderno do que a maior parte da América Latina. Levei para lá minha visão de mundo e, no começo, queria que todos concordassem”, lembra.

Segundo ela, depois de argumentar ao máximo com os colegas até que os debates se tornassem confrontos, ela mudou de estratégia. Resolveu entender o contexto histórico e cultural. “Aos poucos fomos nos respeitando nas diferenças. Esse clima passou a ser acolhedor para quem queria se adaptar, e hoje o estranho para mim é uma sociedade homogênea.”

A proposta de integração faz das salas de aula improvisadas ambientes de diplomacia. No primeiro dia de aula de 2015, uma cerimônia de abertura incluiu discursos do embaixador haitiano, Madsen Cherubin, e da secretária de Direitos Humanos da Presidência da República, Ideli Salvatti. “Todo dia é uma reunião internacional e a teoria é pontuada com vivências de todos os locais”, diz Gisele.

Graduada e mestre pela Universidade Federal de Santa Catarina e doutora pela Universidade de Pablo de Olavide, na Espanha, ela fala com orgulho do projeto. “Para mim, e sei que para a maioria dos professores, funcionários e alunos, a Unila se tornou uma razão de vida mesmo. É mais que um trabalho, é uma sensação de pertencimento a uma comunidade que convive com as diferenças e tira o melhor disso. Algo que se deseja para o mundo.”

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