Educação

Para não repetir o passado

Para historiadora Heloísa Starling, golpe de 1964 deixa lições para os dias de hoje, quando instituições republicanas podem estar ameaçadas

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Para a historiadora Heloísa Starling ||
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Um Brasil polarizado entre aqueles que defendem o impeachment da presidenta Dilma Rousseff e aqueles que apoiam a continuação de seu mandato. O atual momento político no qual o País se vê imerso, tão permeado pela intolerância, revela-se ainda mais preocupante quando olhamos para nossa recente história.

Há exatos 52 anos, o golpe de 64 mergulhava o Brasil em um dos momentos mais obscuros de sua trajetória como nação: a ditadura civil militar, que se estendeu por 21 anos.

“Me parece que o perigo que estamos vivendo, do ponto de vista da política, não é a possibilidade de um novo golpe, mas de um atentado contra as instituições republicanas. O que há de semelhante entre os dois momentos é o clima de intolerância. Se nós evoluirmos da intolerância para o ódio, a violência irá substituir a política”, analisa Heloísa Starling, historiadora, coordenadora do Projeto República da UFMG e autora do livro Brasil:uma biografia.

Em entrevista a Carta Educação, a professora ponderou sobre a atual conjuntura política brasileira e as consequências deixadas pela ditadura militar em nossa sociedade e economia.

Carta Educação: Poderíamos comparar 1964 a 2016? Quais seriam as semelhanças e diferenças?
Heloísa Starling: Não me parece que o problema é um pré-golpe, pois eu não acho que existe essa repetição histórica. O que é problemático é que no Congresso Nacional tem um impeachment em andamento. Se o Congresso votar pelo impeachment, não há ruptura constitucional. Mas se o congresso voltar pelo impeachment baseado em delação, sem que sejam apresentadas provas categóricas contra a presidente da República, o que vai estar em jogo é a fragilidade das instituições, porque isso significa que nós estamos fragilizando a República. Esse tipo de comportamento poderá se repetir a qualquer momento, abre um precedente gravíssimo. Um presidente legitimamente eleito vai ser condenado não porque tenha cometido crimes, mas porque politicamente tem grupos que não acham que ele é bom. Me parece que o perigo que estamos vivendo, do ponto de vista da política, não é a possibilidade de um golpe, mas de um atentado contra as instituições republicanas.

O que há de semelhante entre os dois momentos é o clima de intolerância. Essa intolerância é preocupante porque está na raiz do ódio. Se nós evoluirmos da intolerância para o ódio, a violência irá substituir a política.

CE: O projeto que a Constituição de 1988 tinha para o Brasil corre risco?
HS: O impeachment é um recurso legal previsto pela Constituição e, ainda assim, tem como consequência a ameaça às instituições da República que garantem a liberdade do cidadão. Se começa a se julgar não baseado em provas, mas em indícios e delações, isso é uma ameaça aos direitos de cada um de nós.

CE: De que maneira o período da ditadura ecoa nas mobilizações de hoje?
HS: Às vésperas do golpe de 1964, a sociedade está dividida. E estamos hoje em uma discussão política que se resume a você ser a favor ou contra minhas ideias. Naquele momento, era você ser comunista ou não comunista. A mesma coisa acontece hoje. Nem todas as pessoas que são a favor do impeachment hoje são favoráveis ao golpe militar ou são de extrema direita. Quem é contra o impeachment também não quer dizer que é a favor da corrupção. Se nós reduzirmos a divergência que está acontecendo no país a este confronto, a postura intolerante prevalece, a postura do “eu não suporto que o outro tenha ideias diferente da minha”. Se esse clima evolui, vira o ódio. E o ódio é a violência, é o fascismo.

Documentos revelam os horrores cometidos durante a ditadura militar. Foto: José Cruz/ Agência Brasil Documentos revelam os horrores cometidos durante a ditadura militar. Foto: José Cruz/ Agência Brasil

CE: E o que aprendemos em termos de política com a ditadura?
HS: Nada pode substituir a liberdade do cidadão, essa é a primeira coisa. Um regime autoritário, um regime que elimina as condições de livre expressão não se justifica por nenhum argumento. A manifestação de nossas liberdades por meio da democracia, que foi construída a duras penas, deve prevalecer e isso significa ser capaz de dialogar politicamente mesmo divergindo. Outra lição é que um cidadão para ser julgado precisa o ser por meio de provas que precisam ser contundentes. Ou nós garantimos os aprendizados de 64 que são a liberdade, os direitos e a democracia – e o que nós construímos mal nesse país que é a República – ou vamos ter problemas.

CE: Por que construímos mal a República?
HS: Nós apostamos muito na democracia, e isso é correto porque nós saímos de um regime de 21 anos de ditadura. A República, que é a ideia de que é preciso construir o bem comum, garantir o exercício da lei e do cidadão de se manisfestar, não estava na nossa pauta até recentemente. A crise tem sempre um lado que é mais evidente que é a angústia, a dificuldade, mas também tem a sua positividade, o lado de fazer avançar. Nessa crise, talvez a gente possa avançar naquilo que nos falta hoje, que é a consolidação da República.

CE: No terreno socioeconômico, quais os efeitos que a ditadura civil militar trouxe?
HS: Você tem uma total concentração de renda, portanto, um aumento enorme da desigualdade social e das condições de miséria. E tem uma coisa que é pouco dita que é o preço que algumas populações pagaram por estarem no meio do caminho do projeto de Brasil que os militares tinham. Dois grupos sociais pagaram um preço muito alto. Um foram os camponeses e o outro foram as populações indígenas, que foram dizimados.

CE: O Brasil demorou mais do que seus vizinhos para revisitar a história da ditadura? Isso contribui para o desrespeito à democracia no momento atual?
HS: Mais ou menos, o Chile não fez isso até hoje. A transição para o fim da ditadura no Brasil foi negociada, diferente da Argentina onde os militares foram derrotados – eles perderam a Guerra das Malvinas. No caso do Brasil, a sociedade foi para a rua, se manifestou, mas o fim do período dos militares foi negociado. A Lei da Anistia é a melhor expressão para esta negociação, por meio da qual ficou acordado que não iam mexer com os crimes cometidos durante a ditadura. A sociedade não negociou isso, mas as lideranças políticas sim. E isso tem consequências.

Nesses 30 anos, nós construímos uma democracia sólida sob todos os aspectos. A nossa democracia não é frágil, ela está enfrentando uma crise brava. Tanto que diante dessa crise política e econômica, nossas instituições estão funcionando bem e o povo está se manifestando livremente. O que há do ponto de vista dos crimes da ditadura é que a sociedade brasileira em algum momento deveria se debruçar sobre isso, conhecer melhor seu passado para saber o tamanho da tragédia e, diante disso, formar melhor suas novas gerações e orientar seu futuro para que isso não aconteça mais.

CE: Ao contrário de Jango, que tinha apoio majoritário para suas reformas de base quando caiu, hoje temos uma presidenta com popularidade extremamente baixa (em torno de 10%). Isso pesa contra Dilma?
HS: Claro. Se você tem uma situação onde a presidente da República tem baixa popularidade, do ponto de vista dos grupos de interesse, isso facilita uma solução não-republicana, o impeachment. Esse que é o perigo porque ou a gente prova que a presidente cometeu um crime – e baixa popularidade não é crime – ou então nós vamos ter um problema todas as vezes que grupos, até mesmo majoritários dentro da sociedade, queiram substituir as eleições porque eles acham que o presidente não governa, administra bem.

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