Educação

José Pacheco: esta escola não serve

Educador expõe por que é preciso mudar o modelo de aula que temos hoje para uma educação que una firmeza e carinho

Escola da Ponte|José Pacheco
| |
Apoie Siga-nos no

Só um tema altera o tom calmo e sereno com que fala o professor José Pacheco: a resistência a mudar um modelo de escola que, na sua visão é claro, não funciona. Para o português, os motivos para a reforma saltam aos olhos. Violência, índices baixos, professores desestimulados, analfabetismo funcional. Para isso, propõe um modelo em que o aluno tenha voz e que acabe com séries, professores por disciplinas ou turmas.

“As pessoas olham muito para rankings e não olham para o que está atrás do ranking. Enquanto continuarem a fazer isso, a fazer paliativos, com novas tecnologias usadas para a aula, achando que vai melhorar a nota. A nota não melhora. Pode melhorar na hora, mas piora a seguir. Não se pode achar que para melhorar a violência na escola se deve instalar mais câmeras de vigilância. Não é isso que resolve! Vamos às causas! E a causa é única: essa escola que está aí não serve. E é esta escola que as faculdades reproduzem!”

A afirmação se baseia em outra experiência bem-sucedida de Pacheco, a Escola da Ponte, famosa no País graças a Rubem Alves e seu A Escola com Que Sempre Sonhei sem Imaginar Que Pudesse Existir, obra em que expõe o funcionamento e seu encantamento diante do que testemunhou.

No Brasil, Pacheco atualmente dedica-se à escola que desde janeiro funciona dentro do Projeto Âncora (“minha segunda casa”, define), em Cotia, que desde 1995 atua com crianças e adolescentes da região.

Carta Fundamental: Como o senhor vê a educação no Brasil?
José Pacheco: Há, em alguns domínios, avanços. E quando falo de avanço não é o Bolsa Família, levar as crianças à escola só para mantê-las lá. Um exemplo é o sistema de cotas, que é um avanço e não é. É um avanço na medida em que é preciso algo transitório que permita alguma justiça, mas não é isso que resolve. O sistema de cotas poderia ser dispensado se não houvesse sucateamento da escola pública. Houve nos últimos anos algumas iniciativas pontuais, mas não sou de jogar fora o menino com a água do banho, por assim dizer.

São pontuais porque são iniciativas de prefeituras, de municípios. Há um programa que tenho como referência ministerial, o Mais Educação. É um excelente programa. Escola de tempo integral é uma excelente proposta, porém interpretaram-na mal, e fazem errado. Metade do dia a aula chata e na outra metade o “oba-oba”. É incrível como deterioram tudo aquilo que é proposto. Estamos numa situação deveras delicada e inexplicável quando se fala em investimento, em 5% ou 10% do PIB. A escola não muda com mais dinheiro. A escola muda mudando. O sistema educativo brasileiro, segundo documento da Fiesp, desperdiça 56 bilhões de reais por ano.

Sabes o que é isso? A pergunta é: por quê? Não faltam programas… Por exemplo, o Pacto pela Alfabetização na Idade Certa. Quem é que nos diz que a idade certa é aos 8 anos? Não há uma idade certa. E mais ainda: quem vai fazer a formação – já que fundamentalmente é uma formação? Exatamente os mesmos professores que fizeram a formação inicial. Ou seja: mais do mesmo. Mais uns milhões que não teremos de volta, com resultado nulo. É grave, muito grave. Ainda assim, eu não tenho uma visão catastrófica das coisas, vejo o lado esperançoso. Não otimista, esperançoso.

CF: Tanto na Escola da Ponte como no Projeto Âncora vocês começam com casos dos quais muitos professores de certa forma desistiram. Como engajar educadores ou voluntários nessa mudança?
JP: Existe um paralelismo entre os casos da Ponte e do Projeto Âncora, e isso talvez não seja por acaso. Nós começamos lá na Ponte exatamente com os jovens jogados fora das escolas. Crianças da periferia, jovens com síndrome de Down, com paralisia cerebral, autismo, analfabetos na quarta série, sem pai ou mãe… Tudo o que as escolas não queriam. Isso também porque o bairro onde a Ponte começou é o bairro mais pobre da cidade, é o bairro operário.

Essa pergunta sobre como fazer é comum. Existem vários fatores. Primeiro: a atitude dos educadores. A violência a que essas crianças foram sujeitas, e que as faz ser como elas são, não se resolve com castigos, não se resolve com colocar para fora da sala, não se resolve com câmeras de vigilância. Não se resolve com isso. Resolve-se com negociação e com exemplo. Nós juntamos desde a primeira hora – e imagine o quadro do meu desespero, porque foi tal a destruição aqui – nós juntamos no acolhimento a essas crianças, a firmeza e o carinho. Longe de nós a ideia do autoritarismo, da regra imposta, e também longe de nós a permissividade.

Educar é acreditar na pessoa humana e intervir com carinho e firmeza. Então, o adulto tem de entender que tem uma coisa chamada autoridade, que não é autoritarismo, é autoridade, que vem do latim e etimologicamente significa “ajudar o outro a crescer”. Essa reação dos jovens é uma reação ao poder simbólico, à injustiça. Os alunos não têm qualquer espaço de intervenção, de participação, não têm. Quem decide o que vai ser aprendido, o lugar, o modo, o tempo é o professor. E quando alguém apronta, é castigo.

José Pacheco

CF: Qual a importância da participação da comunidade nesse projeto? E quando há resistência dos pais às mudanças?
JP: Esse divórcio entre família e escola é tradicional. Quando a escola assume a disposição de mudar a sua prática, os pais manifestam-se contrários. Mas temos de compreender que eles têm toda a razão, que é natural. Trata-se da representação que eles têm da escola. E a ação de outros professores em outras escolas manipula os pais contra a escola que faz diferente. Isso é algo terrível de dizer, mas é verdade. Isso é terrível, porque nos fere muito enquanto profissionais. O que nós temos de fazer é perceber que há uma reprodução cultural, e que essa necessária reelaboração estrutural é lenta e, então, é preciso estabelecer diálogo. E o diálogo não acontece numa sessão de pais e mestres. O diálogo acontece entre a discussão dos pais e dos mestres.

A escola não matricula filhos, matricula alunos. Então é preciso que se crie dois estatutos, o dos pais e o dos mestres, para não se estabelecer um diálogo de surdos. Então nós aqui no Ancora, como na Ponte, cuidamos de buscar apoiar os pais para que criem a sua própria associação. Hoje são os pais que dirigem a Ponte, e talvez aqui em um ano ou dois serão os pais que assumirão. E por pais entende-se a comunidade. Não faz sentido que sejam os professores a dirigir uma escola. Não faz sentido.  Então quando nós conversamos com os pais, e lhes retiramos os medos – e o retirar dos medos dos pais consiste em mostrar aos pais que sabemos por que fazemos aquilo que fazemos.

Durante muito tempo lá na Ponte nós éramos objeto de críticas intensas de outras escolas e professores da região. Nós perturbávamos. Então primeiro juntamos os pais e perguntamos quais eram as suas dúvidas, e elas vieram: por que não dão nota, se outras escolas dão? Por que não fazem provas, se as outras fazem? Nós mostramos aos pais por que não se deve dar nota, por que uma prova não prova nada. E abrimos para ir em outras escolas consultar sobre isso.

CF: Por onde deve começar a mudança na educação?
JP: Escolas são pessoas, e pessoas são os seus valores. Os valores costumam sustentar-se com princípios, que juntando com a Lei de Diretrizes e Bases (LDB) consolida a ideia do projeto, da educação. Um projeto significa movimento coletivo. Ninguém muda uma escola sozinho. Se houver professores, e o mínimo é três, que tenham os seus valores numa carta de princípios e um projeto, não há qualquer secretário nem ministro que impeça os professores de fazer o que é preciso. E se alguém pensa o contrário, tem de se ver comigo (risos).

Eu sou muito amigo de alguns secretários, alguns são pessoas maravilhosas, há secretários inteligentes, bondosos, que entendem, acompanham, dão apoio, mas, quando encontro um secretário que seja uma anta, eu reajo, não fico quieto. Porque aquilo que se faz nas escolas quando se faz algo diferente não é mais do que concretizar a LDB. As escolas que têm aula, série, prova, não concretizam a Lei de Diretrizes e Bases. Não concretizam algo básico, o direito a aprender. Então, qual é o secretário que se opõe? Em Portugal tivemos problemas sérios, mas a LDB portuguesa é muito mais rígida do que a lei brasileira. A lei brasileira permite fazer tudo. Basta que se preste atenção ao artigo 23º, que estabelece que as escolas podem fazer tudo, desde que fundamentadas. E fazer tudo é não ter aula nem série…

CF: Por que há resistências a isso?
JP: A prova é um instrumento, a prova pouco ou nada prova. A prova é uma ilusão. Costumo brincar que não é a preocupação com o termômetro que vai fazer baixar a temperatura. As pessoas olham muito para rankings e não olham para o que está atrás do ranking. Enquanto continuarem a fazer isso, a fazer paliativos, com novas tecnologias usadas para a aula, achando que vai melhorar a nota. A nota não melhora. Pode melhorar na hora, mas piora a seguir. Não se pode achar que para melhorar a violência na escola se deve instalar mais câmeras de vigilância. Não é isso que resolve! Vamos às causas! E a causa é única: essa escola que está aí não serve. E é esta escola que as faculdades reproduzem!

CF: Isso esbarra, então, na questão da formação do professor…
JP: Que é miserável. Eu não hesito na palavra: é miserável. Eu tenho muita dificuldade em compreender algumas coisas. O professor aqui já tem baixa autoestima, não é? E quando entra aqui numa faculdade para o curso de pedagogia é invisível. Não é tratado como pessoa, tratam-no como objeto. O que me custa a compreender é que, se as faculdades de pedagogia estão cheias de excelentes profissionais, têm professores maravilhosos nas faculdades do Brasil – e eu os conheço! Têm um cabedal teórico que eu nunca vou ter.

Minha pergunta é: se há tantas teses de doutoramento sobre formação inicial, formação continuada, por que é que continuam dando aula? Por que esses professores continuam a colocar a teoria antes da prática? A teoria não antecede a prática. A prática reclama a teoria para uma prática efetiva. Então pegam os jovens, metem-nos dentro de um “gap” chamado faculdade, depositam aulas sobre eles, enquanto objetos, e eles vão reproduzir a aula. Esse é o conceito de isomorfismo na formação. É a mesma formação, isomorfos, da mesma forma: o modo como o professor aprende é o modo como ensina.

CF: Para terminar: o que é ser educador, então?
JP: É aprender e ajudar a aprender. É fazer os outros mais sábios e mais felizes. E partilhar aquilo que aprende. Tão simples, mas complicam tanto.

CF: Por quê?
JP: Cultura, políticas públicas, gestão, formação. São os quatro gargalos. É tão simples que até dói não verem isso.

*Publicado originalmente em Carta Fundamental

ENTENDA MAIS SOBRE: , , ,

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo

Apoie o jornalismo que chama as coisas pelo nome

Os Brasis divididos pelo bolsonarismo vivem, pensam e se informam em universos paralelos. A vitória de Lula nos dá, finalmente, perspectivas de retomada da vida em um país minimamente normal. Essa reconstrução, porém, será difícil e demorada. E seu apoio, leitor, é ainda mais fundamental.

Portanto, se você é daqueles brasileiros que ainda valorizam e acreditam no bom jornalismo, ajude CartaCapital a seguir lutando. Contribua com o quanto puder.

Quero apoiar