Educação

Ensinar a pensar

Para professor de Filosofia, Juvenal Savian Filho, deve-se estimular o contato direto entre pensador e reflexão sobre a vida hoje

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Boa relação com os textos e olhar crítico sobre a contemporaneidade. Eis dois elementos-chave para a boa formação de docentes para cursos de Filosofia no Ensino Médio, defende Juvenal Savian Filho, doutor em Filosofia pela Universidade de São Paulo e professor da Universidade Federal de São Paulo. “Um professor que frequenta os textos tem mais condições de tornar interessante o ensino, não vai fazer resumos inúteis, saberá correlacionar conceitos, trazer para a aula temas atuais. Enquanto aquele que só conhece os resumos vai reproduzir isso para o aluno de forma cansativa, sem vida, como se os filósofos fossem um bando de gente estranha que deveria estar no museu, e não na vida.”

Disciplina obrigatória desde 2007, a Filosofia, defende ele, permite um tipo de reflexão mais crítica e menos generalista, especialmente quando usada para aproximar os estudantes da discussão de grandes temas – modelo usado por ele para organizar, ao lado de Marilena Chaui, a coleção Filosofias: O prazer do pensar, publicada pela WMF Martins Fontes, que prevê a publicação de 40 títulos até 2014. “Por meio de grandes temas, podemos explorar como foram tratados por diferentes pensadores e mostrar que a reflexão filosófica sobre um tema é real e está ligada à vivência cultural, não está presa apenas ao livro.”

Carta na Escola: Qual é o diagnóstico que o senhor faz do ensino de Filosofia no País desde que a disciplina se tornou obrigatória?

Juvenal Savian Filho: É muito positiva a volta da Filosofia aos currículos porque ela permite um tipo de reflexão mais geral, crítica e não tão especializada como as propostas pelas matérias tradicionais. É claro que não podemos generalizar: há escolas que fazem um bom trabalho, calcado na história da filosofia, que estudam os textos e têm uma atitude de reflexão bastante boa, mas também há um número em que o ensino é muito pobre porque professores são malformados, ou não têm muito entusiasmo. Muitas vezes são pessoas de outras áreas, como historiadores ou sociólogos, que não conhecem bem a história, os textos em si.

Isso para não falar dos agravantes sociais: classes superlotadas, violência da parte dos estudantes. Não há muitas condições físicas, a maioria dos alunos na escola pública não tem acesso a bons filmes e livros. De toda forma, o retorno da Filosofia é positivo porque, no conjunto, oferece um olhar mais voltado para o fundamento do saber e do próprio conhecimento.

CE: Quanto à formação dos professores, como está o panorama?

JSF: Eu diria que é preciso saber que, em todo o Brasil, essa situação é muito -diferente. São Paulo, Minas Gerais, Rio Grande do Sul e Rio de Janeiro têm feito concursos para professores de Filosofia regularmente e são os estados onde encontramos a melhor situação, com docentes especializados que passaram por concurso e se tornaram efetivos. Mas a situação ainda é irregular, por exemplo, no Centro-Oeste e no Nordeste. O Pará fez um concurso recentemente, mas são inúmeros os estados em que nem sequer se fala nisso.

CE: O docente precisa necessariamente ser formado na área para ser um bom professor de filosofia? 
JSF: Não é porque um professor não tem diploma de Filosofia que ele fará um trabalho ruim. Isso é algo importante a ser ressaltado. Muitas vezes, temos bons autodidatas que dão aulas excelentes, assim como temos bacharéis em Filosofia ruins. O importante é ter uma boa carga de leitura dos textos de cada filósofo, uma boa formação na história da Filosofia. O problema são os que têm formação baseada em manuais de Filosofia: esses atuarão de forma terrível porque não têm noção crítica da formação dos conceitos.

Infelizmente, ainda há muitas faculdades que ensinam com base em manuais, então ter o diploma pode, nesses casos, não significar muita coisa. Quando falo que é necessário ter formação em história, não me refiro a textos que narrem a história, mas à formação crítica de leitura. Um professor que frequenta os textos tem muito mais condições de tornar interessante o ensino, não vai fazer resumo inútil, saberá correlacionar conceitos, trazer para a aula temas atuais. Enquanto aquele que só conhece os resumos vai reproduzir isso para o aluno de forma cansativa, sem vida, como se os filósofos fossem um -bando de gente estranha que deveria estar no museu, e não na vida.

CE: Além da abordagem de temas atuais- e do contato com os textos dos filósofos, que elementos são essenciais para um bom curso? 

JSF: São duas frentes. A primeira é conseguir identificar questões filosóficas do mundo de hoje, atrair a atenção dos estudantes. Um exemplo que hoje os chama muito é a discussão sobre o mundo virtual: ele é real ou virtual no mau sentido? Como fica nossa afetividade, nosso corpo dentro dele? E há também questões mais complexas, no sentido da ética, dos valores. Hoje, quando começam a refletir sobre a vida, as pessoas dizem que é difícil ser ético. Mas o que é ser ético? O que é ter valores? O que são valores? Outros temas latentes são os referentes à mídia, à liberdade de imprensa, ao controle do jornalismo. São todas questões que podem ser abordadas de um ponto de vista filosófico. Há um risco, aqui, de cair na Sociologia ou na História. O filósofo não está interessado em explicar a partir do contexto, mas do próprio acontecimento, do fato. Ele vai se perguntar, voltando ao último exemplo: o que é a imprensa? O que é liberdade? Por que o controle é bom ou por que ele não é bom?

O filósofo questiona o fundamento das coisas. Em muitas escolas, se confunde -Filosofia com Sociologia, acha que é criticar, fazer análise da sociedade, o que tem de ser feito, sim, mas tendo em mente o fundamento, não a descrição. Maurice Merleau-Ponty, no prefácio de Signos, faz um comentário irônico de que o filósofo tem historicamente a imagem de ser aquele que discorda de tudo, de que, para ser considerado bom, ele tem de ter fama de revoltado. Não é exatamente assim que tem de ser: ele tem de enxergar o fundamento. Uma vez levantadas essas questões, é preciso refletir partindo sempre do patrimônio dos filósofos que nos precederam. Ou seja, a partir de referenciais que vêm da tradição para mostrar que a maneira de tratar o conceito não é de agora. Assim, se a aula vai ser sobre liberdade de imprensa, temos de voltar a como os antigos entendiam a liberdade. Isso passará por Sartre, Nietzsche, pelos gregos, Santo Agostinho e, principalmente, pelos pensadores medievais que se baseavam em Platão e Aristóteles. Ou seja, são -duas frentes. A primeira é levantar as questões de maneira filosófica. A segunda, abordá-las a partir do repertório dos filósofos. Vem daí a importância de o professor ter contato com os textos.

CE: De que forma o professor pode identificar essas questões mais latentes e dialogar com o dia a dia do estudante? 

JSF: É preciso que ele consiga identificar temas de interesse, que tente perceber o que estão vivendo e ter em mente que cada sala tem uma realidade. A partir daí, começa o trabalho de mostrar que muito do que a Filosofia diz pode servir para a compreensão desses temas. Um exemplo bem concreto: uma vez, numa aula para um primeiro ano de faculdade, uma aluna fez perguntas que indicavam que ela vivia um momento emocional e psicológico difícil. Ela queria saber como os filósofos pensavam o presente, o passado e o futuro e parecia buscar aí uma forma de sofrer menos. Eu não poderia fazer terapia em aula, mas resolvi apresentar a ela, de modo didático e simplificado, o pensamento de Henri Bergson.

Disse: você fala do presente, do passado e do futuro como se fossem coisas estanques, separadas. Para ele, o passado é o presente e interfere na vida atual. Os olhos dela se encheram de lágrimas. Era algo filosófico que tomava significado vital para ela. Se eu tivesse começado a listar a vida de Bergson, falado da consciência, do élan vital, da crítica a Immanuel Kant, seria algo bastante incompreensível, mas, ao fazer a apresentação de forma empática, consegui sua atenção. A questão, aqui, é que o professor não pode fazer isso de uma forma medíocre, atraindo a atenção para si em vez de para a Filosofia. Temos uma cultura em que o professor precisa ser gostado, como se o sucesso da educação estivesse na boa relação dele com o aluno, quando, na verdade, o sucesso está em atrair esse aluno para o saber.

CE: E quanto à resistência por parte dos estudantes em relação à disciplina? Ela ainda existe? Como contorná-la?

JSF: Existe e muitos professores trazem esse relato. Porém, muitos dos alunos que dizem “para que vou aprender isso?” têm aulas que apresentam a Filosofia como uma coisa de museu, uma galeria de mortos que falaram coisas que a gente não sabe por que motivo estuda. É natural que, com uma abordagem assim, o aluno tenha ojeriza. Por outro lado, temos de ter em mente que essa é uma disciplina muito exigente e que é natural que o estudante sofra de início. E mais: atualmente, todos nós estamos mergulhados em um mundo de imagem, de comunicação rápida. O virtual mudou nossas concepções de tempo e espaço e em todos os lugares somos bombardeados por imagens. É aí que deve entrar o professor, mostrando que a Filosofia é uma atividade que exige paciência, esforço, cuidado com o texto.

CE: Quais os benefícios que um bom curso de Filosofia pode trazer para o aluno? 

JSF: O aprendizado da atividade do pensamento. Mesmo que não saia com um repertório enorme, o que não é possível de qualquer forma, o aluno deve ter tido contato com textos de inúmeros autores. Assim, em primeiro lugar, ele aprenderá e assimilará critérios para tornar o pensamento mais articulado e convincente do ponto de vista da argumentação. Nesses textos, ele terá contato com maneiras demonstrativas de falar, com argumentos e justificativas. Aqui entra o contato com modelos de lógica e raciocínio. Além disso, o contato com conceitos filosóficos e a aquisição de -repertório -ampliam os sentidos de mundo do estudante. Numa palestra, certa vez, me perguntaram por que insistir para que os alunos leiam. Porque fazer uma boa leitura, num bom nível e com olhos filosóficos, permite a eles ter acesso a níveis mais profundos de significado da vida.

CE: E há material didático de qualidade que norteie esse tipo de reflexão?

JSF: Muitas vezes os professores reclamam disso, mas existe, sim. A apostila feita pelo governo do estado de São Paulo é horrível, na minha visão não deveria ser usada. Ela peca por apresentar ideias cristalizadas e coisas que não dizem respeito à vida do estudante, de novo, na lógica da galeria de museu. Quando é atualizada, é de forma rasa, rasteira, como se o estudo devesse ser da Filosofia pop. Algo muito positivo, porém, foi a realização do Programa Nacional do Livro Didático 2012 para a área de Filosofia. Pela primeira vez, a partir deste ano, os professores receberão os livros e os três títulos selecionados são muito bons, bastante satisfatórios. Mas há mais livros à venda que podem ser de grande ajuda.

A Loyola edita uma coleção chamada Uma Nova História da Filosofia Ocidental, de Anthony Kenny, que é talvez a melhor reunião sobre história da Filosofia que temos em língua portuguesa, além dos dicionários de José Ferrater Mora. E há também a coleção que organizo com a professora Marilena Chaui. Fora isso, há muita coisa de qualidade na internet gratuitamente. A Associação Nacional de Pós-graduação em Filosofia reúne em seu site links para diversas revistas de qualidade produzidas no Brasil. O Departamento de Filosofia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (USP) também disponibiliza para download artigos da Revista Discurso. Há ainda um site de professores portugueses, chamado Crítica na Rede, com uma série de bons artigos que podem ser acessados.

CE: Quais foram os principais condutores na organização que o senhor dirige com Marilena Chaui?

JSF: O primeiro critério foi falar de filosofias no plural, e não no singular, para não dar a noção errada de que só existe uma correta e de que as outras são falsas. É possível discutir, mas é preciso dizer que há muitas maneiras de fazer -Filosofia. Nós escolhemos falar de temas porque acreditamos que eles tornam o conteúdo mais atraente, permitem passar por vários autores. Por outro lado, se a gente falasse de autores talvez caíssemos em algo que já existe, além de ser algo sempre muito ambíguo, porque quem escreve apresenta aquele pensamento de sua maneira e o ideal- é sugerir que os alunos vão até ele. Por meios de grandes assuntos, podemos explorar como foram tratados por diferentes pensadores e também dar sugestões mais livres de literatura, cinema, obras de arte, e mostrar que a reflexão filosófica sobre um tema é viva e está ligada à vivência cultural, não está presa apenas ao livro.

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