Educação

Educação Física amplia repertório cultural do jovem

Especialista explica como o papel da disciplina vai muito além de vender estilo de vida saudável e da espetacularização do esporte

Marcos Neira
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Qual a função da Educação Física na escola? Ao contrário do que acredita o senso comum, nada tem a ver com vender um estilo de vida saudável e com a espetacularização do esporte. “Precisamos fugir dessa ideia de que a Educação Física está na escola para combater a obesidade e para preparar atletas”, aponta Marcos Neira, professor da Faculdade de Educação da USP e coordenador do Grupo de Pesquisas em Educação Física Escolar.

Para o professor, como consequência da retirada da obrigatoriedade da Educação Física do currículo do Ensino Médio, prevista pela Medida Provisória da reforma, corremos o risco de vermos uma redução do repertório cultural dos jovens e o aumento da discriminação em relação à práticas corporais e culturais contra-hegemônicas. “Possivelmente, muitos meninos e meninas ficarão impedidos de conhecer e de se reconhecer como sujeitos dessas culturas”, explica em entrevista ao Carta Educação.

Carta Educação: Como o senhor enxerga a supressão da obrigatoriedade de Educação Física do Ensino Médio, entre outras disciplinas?

Marcos Neira: Considero uma grande perda, pois os alunos do Ensino Médio não terão a oportunidade de entrar em contato com conhecimentos essenciais para entender a sociedade que vivemos. Algo que precisamos levar em consideração é: como as escolas vão ler isso? Já não havia um esforço grande por parte delas de garantir que esses componentes [Educação Física, Artes, Filosofia e Sociologia] fossem ensinados mesmo quando eram obrigatórios. Então, se considerarmos isso, Educação Física vai sumir do Ensino Médio. Estamos vivendo um período em que a Educação Básica está sendo vista como uma experiência de instrumentalização para a formação de mão de obra. E quanto mais rápida for essa formação, melhor. Tanto que uma das propostas é a retomada da formação técnica profissionalizante dentro do Ensino Médio, que tinha sido deixada de fora pela LDB [Lei de Diretrizes e Bases da Educação].

A retirada de Artes, Educação Física, Sociologia e Filosofia é muito sintomática, porque são componentes que oferecem condições de se fazer uma apreciação estética do mundo, entender outras formas de expressão a partir da linguagem corporal, diferentes formas de pensamento e de relações sociais. Quando eu retiro a obrigatoriedade desses componentes do Ensino Médio, eu empobreço esse potencial nos jovens.

CE: Ainda sobre a eliminação da obrigatoriedade de Educação Física, podemos dizer que há uma desvalorização das expressões e práticas ligadas ao corpo em detrimento das habilidades intelectuais?

MN: Acho que isso mostra como só se valoriza determinado tipo de conhecimento. Estamos vivendo um momento em que tudo precisa ser transformado em recurso econômico. Então só é importante aquilo que pode instrumentalizar a pessoa para ganhar um pouco mais. A população não vai sair às ruas defendendo esses componentes curriculares porque para as famílias é melhor que seus filhos tenham mais Informática e Inglês para arrumar um emprego. Então, é papel do Estado defender esse tipo de conhecimento. O Estado deveria patrocinar a formação de professores nessas áreas e garantir seu espaço nos currículos, porque a vida das pessoas não é só feita de conhecimentos úteis para ganhar dinheiro. Eu nem diria que é um dualismo intelecto e outras linguagens, porque Filosofia, Artes e Sociologia acabam sofrendo com isso também. Mas é sobre qual conhecimento é mais facilmente transformado em commodity, mais facilmente comercializável.

CE: Afinal, para que serve a Educação Física escolar?

MN: A função da Educação Física é tematizar as práticas corporais na escola. Seu objetivo é proporcionar uma leitura mais qualificada desses textos da cultura, bem como a sua produção. Dizendo de outro modo, as atividades realizadas por esse componente curricular visam fomentar uma melhor compreensão dos significados e sentidos atribuídos às brincadeiras, danças, lutas, esportes e ginásticas, como e por quem foram ou são produzidos e com quais finalidades. E também proporcionar a reconstrução crítica das práticas corporais na escola em conformidade com as características de cada grupo.

CE: Quão importante é para o jovem ter contato com as expressões corporais e culturais abrangidas pela Educação Física?

MN: Primeiro, temos que fazer uma observação. Quando o jovem vai para a academia, pratica um esporte ou vai dançar em uma balada estamos diante de um tipo de relação com as práticas corporais. Na escola, elas precisam ser tematizadas, lidas, compreendidas e reconstruídas. Se você impedir o jovem de viver esse tipo de experiência formativa, ele não vai entender como essas práticas se sistematizam na sociedade e seus significados para os diversos grupos. Então, como consequência, possivelmente veremos a discriminação em relação à certas práticas corporais, principalmente em relação àquelas que não integram a cultura hegemônica. Possivelmente, muitos meninos e meninas do Ensino Médio ficarão impedidos de reconhecer e de se reconhecer como sujeitos dessas culturas.

CE: Quais os efeitos dessa ausência de reconhecimento?

MN: Os efeitos podem ser catastróficos quando estamos querendo construir uma sociedade mais democrática. Porque é graças ao professor de Educação Física, que tematiza os vários tipos de danças, que o jovem pode reconhecer e respeitar aqueles grupos que dançam danças que ele não dança. É graças ao professor de Educação Física que o aluno pode entender o contexto da Copa do Mundo ou das Olimpíadas, inclusive, quem foi desalojado, prejudicado por esses grandes eventos. A ausência da Educação Física na escola impossibilitará o questionamento daquilo que se diz e pensa sobre as brincadeiras, danças, lutas, esportes e ginásticas. Jovens e adultos correrão o risco de ter como única fonte de informação aquilo que veem e ouvem dos amigos, familiares e nas mídias.

CE: O senhor diz que isso não necessariamente tem a ver com vender um estilo de vida saudável e com a espetacularização do esporte, mas de ter um olhar crítico sobre essas práticas. É isso?

MN: Vi muita gente falando “imagine tirar Educação Física do currículo em ano de Olimpíadas” ou “com o sedentarismo da população” e essa simplesmente não é a função da Educação Física. O objetivo da disciplina vai em outra direção que não é a das visões funcionalistas que aparecem com tanta frequência nas mídias. Precisamos fugir dessa ideia de que a Educação Física está na escola para combater a obesidade e para preparar atletas para eventos esportivos. Isso já aconteceu no Brasil e teve efeitos terríveis.

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