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Opinião: a pobreza não pode nos tirar o direito de sonhar

Educadora fala sobre a importância em estimular jovens pobres a almejar vôos altos

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Por Luana Tolentino 

 “A vida é assim: feita de sonhos. E é isso que nos mantém vivos.” (Racionais MC’s)

Iniciei a minha carreira docente em 2008. Desde então, trabalho em bairros de alta vulnerabilidade social da região metropolitana de Belo Horizonte. Nesse período, meus olhos viram muita coisa. Vi a pobreza, a violência e o analfabetismo, resultado de um país que nas palavras do professor Gaudêncio Frigotto “se ergueu pela desigualdade e se alimenta dela”. Vi também os avanços significativos provocados pelas políticas públicas de inclusão social implementadas durante os governos do ex-presidente Lula e de Dilma Rousseff. Hoje, pouco mais de um ano após a ex-presidenta ser destituída do cargo, tenho a sensação de estar vivendo um verdadeiro pesadelo. Vejo muitos retrocessos, inclusive a volta da fome nos lares dos meus alunos.

Em meio a tantos golpes, posso dizer que 2018 foi um ano positivo no que diz respeito a novos aprendizados e novas experiências. Por diversas vezes tive a oportunidade de re-ver a minha condição de educadora. É impressionante a nossa resistência em questionar as práticas, condutas e metodologias de ensino adotadas cotidianamente. Re-aprendi a importância do reconhecimento e da escuta, “exercício que garante que nenhum aluno permaneça invisível em sala de aula.” Assevero que as chances de obter êxito no processo educativo são muito maiores quando as vivências e as experiências dos alunos são respeitadas e levadas em consideração.

No início do ano, Marcelo, aluno do 7º ano, me surpreendeu com a seguinte pergunta:

– Professora, pra que preciso aprender Ciências se eu vou trabalhar em obra?

A convicção de um garoto de doze anos em relação ao futuro tirou da minha boca qualquer explicação. Passei horas pensando em que momento ele se deu conta de que seu destino é ser um operário da construção civil. Ressalto que não há demérito em ser ajudante de pedreiro ou coisa parecida. É uma profissão digna que merece respeito como qualquer outra. O meu questionamento se deve ao fato de que “trabalhar em obra” é uma função de baixa remuneração e que exige pouca escolaridade. Sem saber, o Marcelo me ensinou que além de promover uma educação antirracista e feminista, eu precisava ensiná-lo a sonhar.

Leia também: Você faz faxina? Não, faço mestrado. Sou professora. 

No dia seguinte, levei para a sala de aula a história do Fábio Constantino, que em 2016, após muita dedicação, foi aprovado em primeiro lugar no vestibular para o curso de medicina da UFRN. A escolha por tomar o jovem potiguar como exemplo não se deu de maneira aleatória ou casual. Nascido em Assu, cidade do interior do Rio Grande do Norte, assim como a maioria dos meus alunos, Fábio é negro e filho de uma empregada doméstica.

Em momento algum o objetivo da atividade foi fazer uma verdadeira ode à meritocracia. Falácias amplamente difundidas pelo senso comum e em programas de auditório como “basta querer para vencer na vida”, não têm vez nas minhas aulas. Após a leitura da matéria sobre o Fábio, lembrei que infelizmente ainda há poucos Fábios Costantinos em nosso país. Mencionei que tal fato não se deve apenas a falta de “esforço próprio”, como muitos equivocadamente costumam dizer.

Expliquei para o Marcelo e para o restante da turma que eles estão inseridos em um processo que o sociólogo português Boaventura de Sousa Santos convencionou chamar de “fascismo social”. Dentro dessa lógica, é criada toda uma cartografia urbana, juntamente com outros mecanismos de exclusão social e econômica que impedem crianças e jovens pobres até mesmo de almejar vôos mais altos, o que evidencia a perversidade dos que detém o poder no Brasil.

O fascismo social está na distância entre a periferia e as universidades públicas. Está no alto preço e na precariedade do transporte urbano que limita a circulação dos sujeitos periféricos por outros espaços. Está nos estereótipos construídos em relação aos negros, pobres e favelados, que são vistos como verdadeiros intrusos nas áreas centrais e nobres das cidades. Está nas falhas do ensino público, que serve também como uma grande fábrica de mão-de-obra barata a serviço do sistema capitalista. É a escola pública quem fornece para o mercado de trabalho pedreiros, empregadas domésticas, porteiros, faxineiras, zeladores, empacotadores e tantas outras profissões de menor prestígio social.

A partir dessa perspectiva, fica fácil compreender porque o Marcelo não vê sentido em aprender Ciências ou qualquer outra disciplina, uma vez que dentro do modelo segregacionista no qual o Brasil está ancorado, todos os caminhos que ele percorrer o levará a carregar pilhas de tijolos e massa de concreto, como certamente seus parentes e amigos fazem.

Todas essas questões renderam um debate longo e acalorado. Insisto em dizer que os alunos carregam dentro de si muitos conhecimentos, o que falta na maioria das vezes é estimulá-los. Durante a discussão, percebi que naquela sala poderia surgir inclusive um grande sociólogo – “Quem faz medicina são os ricos ou quem estuda nas escolas particulares. Eles têm muito mais oportunidades do que nós.” – disse um aluno com muita propriedade.

Conforme esperado, alguns alunos foram contaminados pela ideologia do mérito pessoal. Criar a falsa ideia de que os pobres vivem em condições precárias de subsistência porque querem é mais uma arma de controle social criada pelas elites. Felizmente, a maioria compreendeu que é a falta de incentivo, de condições materiais e de políticas públicas que os impedem de criar outras expectativas em relação ao futuro.

Embora vivenciem uma realidade dura e perversa, tentei mostrar para os meus alunos que eles não têm que trabalhar apenas em obras. Insisti em dizer que eles são inteligentes e capazes, sendo assim, a exemplo do Fábio Constantino, podem galgar uma vida com mais desejos e possibilidades. Busquei apontar a importância da escola e dos saberes nela produzidos nesse processo.

Conforme costumo fazer em todas as atividades, ao final, pedi que cada um relatasse o que aprendeu com a história do Fábio e com o debate realizado em sala de aula. Enquanto eu estiver nesse mundo, jamais me esquecerei das palavras do Marcelo:

– Eu aprendi que a pobreza não pode tirar da gente o direito de sonhar.

Meu desejo é que em 2018 todos nós possamos aprender com o Marcelo. Que a pobreza, a injustiça, a estupidez, a ignorância e as aves de rapina que deterioram esse país não nos tirem o direito de sonhar com dias melhores.

Feliz Ano Novo!

Luana Tolentino é professora e historiadora. Mestranda em Educação pela Universidade Federal de Ouro Preto.

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