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Opinião

Militarização do ensino fere a Constituição

O interesse de boa parte da população pelas escolas militares não se deve à disciplina por elas prometida, e sim ao desejo por uma educação de qualidade para todos os estudantes

Escola militarCréditos: Reprodução Portal Aprendiz
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Por José de Ribamar Virgolino Barroso

A rede da Campanha Nacional pelo Direito à Educação divulgou um extenso documento contra a militarização das escolas. De 2013 a 2018, o número de escolas estaduais geridas pela Polícia Militar (PM) saltou de 39 para 122 em 14 estados — um aumento de 212% —, conforme a revista Época. Em 2019, outras 70 escolas deverão seguir esse caminho.

A entrega da gestão de escolas públicas à PM aparece como uma resposta à crescente violência no ambiente estudantil, contra professores, servidores e entre os próprios alunos, do tráfico de drogas. Busca disciplina, respeito e melhora no desempenho escolar. Adota obrigação de continências, controle do vocabulário utilizado e uniformes e cortes de cabelo militares.

O Fórum Estadual de Educação (FEE) de Goiás, estado precursor dessa iniciativa e em que existem 53 mil alunos nas 46 escolas administradas pela PM, considerou que sua adoção acaba por “determinar a cobrança de taxas em escolas públicas; implantar uma gestão militar que não conhece a realidade escolar, destituindo os diretores eleitos pela comunidade escolar; impor aos professores e estudantes as concepções, normas e valores da instituição militar, comprometendo o processo formativo plural e se apropriando do espaço público em favor de uma lógica de gestão militarizada; reservar 50% das vagas da escola para dependentes de militares”.

A coordenadora do FEE-Goiás, Virginia Maria Pereira de Melo, acredita que os resultados obtidos nestas escolas “são decorrentes não da gestão militar, mas das condições diferenciadas efetivamente oferecidas. Caso essas mesmas condições estivessem presentes nas demais escolas públicas, elas e seus profissionais seriam com certeza capazes de assumir o trabalho com a competência necessária”.

Na Bahia existem 14 colégios da PM, com 70% das vagas destinadas a filhos de policiais e 30% sorteadas entre civis. No Piauí, até 2013, existia apenas uma escola de Ensino Médio coordenada pela Polícia Militar. O governo pretendia militarizar 14 escolas em 2016. Os movimentos sociais acionaram o Ministério Público, que recomendou a “suspensão imediata da implantação de quaisquer ‘Escolas Militares’ no âmbito das escolas geridas pela Secretaria Estadual de Educação”.

Estudo do Comitê Piauí da Campanha demonstrou que, nestas escolas, policiais militares exercem funções de natureza civil, como diretor, coordenador, supervisor, entre outros cargos. Em 2017, a secretaria piauiense tornou uma escola de Ensino Médio militar em Teresina e intensificou a formação de vários “Pelotões Mirim”. O estado mantém milhares de crianças e jovens de 6 a 16 anos em projetos como “Cidadão Mirim” e “Combatente Mirim”, entre outros.

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A Procuradoria-Geral de Justiça impetrou Ação Direta de Inconstitucionalidade contra leis e decretos que regulamentaram e aumentaram as escolas militares em Rondônia. As irregularidades apontadas são: incompatibilidade com as atribuições do órgão de segurança pública, retirada de autonomia das escolas, falta de autorização do conselho estadual de educação e de diálogo com a sociedade, a possibilidade de abertura de privilégios em relação à reserva de vagas para dependentes de militares, a possível cobrança de taxas nas escolas que deveriam ser gratuitas, entre outras.

O documento da Campanha lembra que a Constituição e a legislação educacional brasileira determinam que a educação básica é de responsabilidade prioritária das pastas de educação estaduais e municipais, e não de outros órgãos. Para a coordenadora do Comitê da Campanha no Distrito Federal, Catarina de Almeida Santos, “tal movimento representa um desvio de função da política e dos órgãos militares em prover esse serviço público, inclusive considerando que não têm dado conta de cumprir com sua função primária, na segurança pública”.

Na perspectiva do direito à educação, viola o artigo 206 da Constituição da “liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber”, do “pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas” e da gestão democrática do ensino público. O art. 15 da Lei de Diretrizes e Bases da Educação regulamenta a prerrogativa de autonomia das escolas, progressivamente assegurada, em vertente oposta à intervenção de militares na gestão escolar. Os objetivos e propósitos das Diretrizes Curriculares Nacionais da Educação Básica não comportam o princípio pedagógico dessas escolas, definido como “hierarquia e disciplina”. Quanto aos profissionais do magistério, a militarização viola o art. 61 da LDB, que delimita que estão legalmente autorizados ao trabalho no ensino os professores e os trabalhadores da educação com habilitação específica.

Além de inconstitucional, a militarização viola os tratados internacionais assinados pelo Brasil, especialmente a Convenção sobre os Direitos da Criança, de 1989, ratificada e promulgada no Brasil na década de 1990 e que sujeita o país ao monitoramento internacional rotineiro.

O interesse de boa parte da população pelas escolas militares não se deve à disciplina por elas prometida, e sim ao desejo por uma educação de qualidade para todos os estudantes. É preciso devolver a educação aos educadores.

José de Ribamar Virgolino Barroso é coordenador da Secretaria de Finanças da Confederação Nacional dos Trabalhadores em Estabelecimentos de Ensino — Contee

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