Educação

Uma escola para o meu quilombo

Aumentam as escolas localizadas em comunidades quilombolas, mas infraestrutura, formação de professores e currículo próprio são desafios

Fabio Moraes|Alexandra da Silva
Fábio Moares estuda na escola de sua comunidade e não enfrenta os problemas que a mãe Edna |
Apoie Siga-nos no

A quadra, as professoras e a diretora”, elenca Fábio Moraes Ferreira da Cruz, 11 anos, quando perguntado sobre o que mais gosta em sua escola. Filho de uma funcionária, Fábio estuda na primeira escola quilombola do estado de São Paulo, a Escola Estadual Maria Antônia Chules Princesa, localizada na zona rural do município de Eldorado, no Vale do Ribeira, e criada em 2005.

A mãe, Edna Moraes, 34 anos, trabalha no refeitório e se lembra com clareza do tempo em que não havia uma escola como a Chules Princesa na região. “É um privilégio meu filho estudar aqui”, conta, enquanto enche canecas com leite achocolatado para as crianças menores. “Antes era tudo longe. A gente saía muito cedo e voltava muito tarde. Hoje só não estuda mesmo quem não quer”, diz.

Criado na comunidade quilombola André Lopes, uma das seis atendidas pela unidade escolar, Elson Alves da Silva também se lembra de épocas mais difíceis. “As demandas educacionais eram grandes, mas a oferta era mínima. Só havia o primeiro ciclo do Ensino Fundamental. Quem quisesse continuar os estudos, precisava subir para a cidade, a 50 quilômetros de distância”, conta Silva, professor da escola até 2009.

A exemplo de Edna e de Elson, a trajetória escolar de parte das professoras pertencentes às comunidades foi marcada pela distância que separava suas casas das escolas e pela rotina de “acordar muito cedo e voltar muito tarde”. Há pouco tempo, escolas de Ensino Médio só existiam na zona urbana mais próxima, na cidade de Eldorado. Já o Ensino Superior, só em municípios ainda maiores e mais centrais. Nem todos conseguiam ir adiante.

Leia também: História negra, escola branca

Alexandra da Silva, hoje coordenadora da Chules Princesa, chegou a morar no ABC paulista, na cidade de São Bernardo do Campo, para continuar os estudos. Na cidade, trabalhava como empregada doméstica durante o dia e estudava à noite. “Eu procurava aproveitar ao máximo”, conta Alexandra, 39 anos, que depois retornou e concluiu o curso de Magistério na região. Em 2007, ela começou a dar aulas na escola e hoje é uma das poucas docentes oriundas de uma comunidade quilombola, a de Ivaporunduva. “A escola começou por meio do movimento das comunidades, por conta dos alunos que tinham dificuldade para estudar”, explica.

Alexandra da Silva Alexandra da Silva está entre as professoras quilombolas da Chules Princesa, no interior de SP

História e cultura

Escola quilombola é aquela situada dentro de uma comunidade remanescente de quilombos. Muitas vezes associados apenas aos núcleos formados a partir da fuga de escravos, as comunidades quilombolas hoje são definidas como “grupos etnorraciais segundo critérios de autoatribuição, com trajetória histórica própria, dotados de relações territoriais específicas, com presunção de ancestralidade negra relacionada com a resistência à opressão histórica sofrida”. O que diferencia uma escola quilombola de uma escola regular é o respeito à cultura e à história do local. Por causa disso, o projeto político pedagógico da escola precisa, além do núcleo comum, estar voltado para a realidade local.

A Chules Princesa contribuiu para a redução da evasão escolar que assolava os moradores das seis comunidades remanescentes de quilombos da região. Dificuldades de deslocamento, falta de incentivo por motivo dos conteúdos estudados nas escolas da cidade e até discriminação eram alguns dos fatores que afastavam a comunidade da vida escolar. Hoje, 95% dos estudantes quilombolas frequentam a escola até o final dos ciclos. A escola, porém, ainda enfrenta desafios para atender com qualidade aos alunos da região do Vale do Ribeira. Alta rotatividade de professores, pouca infraestrutura, baixo número de docentes quilombolas e dificuldade de implantação efetiva das diretrizes curriculares são problemas presentes. Muitos deles são comuns aos enfrentados por outras instituições de ensino localizadas em locais remanescentes de quilombos em todo o Brasil.

De acordo com mapeamento feito pela Fundação Cultural Palmares, ligada ao Ministério da Cultura, existem hoje 3.754 comunidades remanescentes de quilombos no Brasil, a maioria concentrada nos estados do Maranhão, Bahia e Minas Gerais. O número, porém, é incerto – outras fontes calculam que as comunidades quilombolas brasileiras possam chegar a 5 mil. Também é incerta a quantidade de escolas localizadas em áreas remanescentes de quilombos. Segundo dados do Inep, existem 1.561 escolas de Ensino Fundamental e 57 de Ensino Médio no Brasil, responsáveis pelo atendimento de 212 mil alunos. Em 2004, eram apenas 364 escolas.  “Em geral, as escolas só oferecem o primeiro ciclo do Ensino Fundamental. Um número razoável já alcança o ensino do quinto ao nono ano, mas Ensino Médio é raríssimo”, conta a pesquisadora Gloria Moura, da Universidade de Brasília (UnB). Criado em 2003, o programa Brasil Quilombola envolve 23 instituições federais, incluindo o MEC, responsável pela ampliação e melhoria da rede física escolar, impressão e distribuição de materiais didáticos e formação continuada de professores.

No entanto, ainda há comunidades que funcionam sem escolas ou com salas de aula improvisadas. Relatório de ações do Brasil Quilombola revela características precárias de grande parte das escolas: em geral construídas de palha ou pau a pique, poucas possuem água potável e instalações sanitárias adequadas. Apesar do crescimento do número de matrículas e de escolas nos últimos anos, o analfabetismo ainda é um problema nas comunidades: 24,8% dos quilombolas inscritos no cadastro único dos programas sociais do governo federal não sabem ler. A média de analfabetismo no Brasil é de 9%.

Embora possa ser considerada exceção no universo das escolas do gênero por possuir água encanada e energia elétrica, a escola Chules Princesa ainda tem problemas. Fábio, filho de Edna, vem até a escola de ônibus, estuda no período da tarde e, apesar de afirmar que gosta muito da escola, mantém os olhos abertos para os problemas existentes. Interpelado sobre as coisas que menos gosta, o aluno do sexto ano é discreto na observação. “Os bancos”, diz em voz baixa, balançando os pés descalços e apontando o banco de madeira com as bordas descascadas reservado para as refeições dos 270 alunos da escola. Também não há telefone fixo na escola, apenas um orelhão nas proximidades.

Problemas com o espaço físico são características das escolas rurais brasileiras como um todo, e não exclusividade daquelas localizadas em regiões remanescentes de quilombos. “Claro que a escola quilombola precisa de uma parte física bem estruturada, mas a formação de professores é mais importante”, afirma Glória Moura.

Desconhecimento e até mesmo racismo por parte de gestores estaduais e municipais também são citados por Maria Auxiliadora, responsável pela Educação Quilombola no Ministério da Educação, como obstáculos no caminho de uma educação de qualidade para os moradores quilombolas. “Se existe problemas de discriminação na zona urbana, imagine em uma comunidade isolada, onde muitas vezes as administrações municipais e as diretoras e professoras estão tratando a oferta de educação básica como um favor para essas comunidades, quando é um direito.”

Sistematizadas em 2012, as diretrizes curriculares para a Educação Básica oferecidas em escolas quilombolas estabelecem que a cultura, a história e as tradições locais devem ser centrais no ensino. A valorização, porém, não inviabiliza o aprendizado das disciplinas tradicionais. “Muitas vezes as pessoas pensam que não é preciso trabalhar os conteúdos do núcleo comum. Isso não é verdade: Português, Matemática ou Geografia precisam ser transversalizados pela cultura daquela comunidade”, explica Maria Auxiliadora.

Criada há dez anos, a Lei nº 10.639 estabelece o ensino obrigatório de História e Cultura Afro-Brasileira em todos os estabelecimentos de Educação Básica. Na prática, porém, ainda há dificuldade para transformar a lei em realidade.

No caso da Escola Maria Antônia Chules Princesa, o currículo ainda está sendo transformado. Desde 2011, estão em curso ações de formação de professores e a compilação de histórias e relatos tradicionais das comunidades atendidas pela escola. A ideia é que o material produzido a partir das entrevistas possa ajudar o professor a trabalhar a temática dentro de sala de aula.

O entra e sai de professores, porém, é um dos entraves para a melhoria da qualidade no ensino. “A rotatividade fará com que comecemos tudo de novo”, lamenta Aparecida de Fátima dos Santos Pereira, professora coordenadora do núcleo pedagógico de História e responsável pela Educação Quilombola na Chules Princesa. Só na virada do ano, oito professores saíram da escola, desestimulados pela dificuldade de acesso.

Marli Maciel da Silva é a professora responsável pela sala de leitura no estabelecimento de ensino. Segundo ela, o maior desafio enfrentado pelo corpo docente é o nível de aprendizado dos alunos, difícil devido à história de vida e às condições socioeconômicas. Em 2011, a escola atingiu a nota  3,3 no Ideb, bem abaixo da média do município, que é de 4,6. No entanto, segundo Marli, o resgate das tradições dentro da escola é algo que anima os estudantes.

Hoje, alguns dos desistentes retornaram para os bancos escolares da Chules Princesa no período noturno e cursam a Educação de Jovens e Adultos. Para o ex-professor e líder comunitário Elson da Silva, isso demonstra que a escola está, aos poucos, eliminando os problemas que afastavam os quilombolas da educação. “Aqui estamos entre os nossos pares, não há discriminação de um aluno para outro, não há diferenças sociais gritantes e todos vão para escola não pela obrigação, mas pelo gosto.”

Brasil Quilombola
Existem hoje 214 mil famílias e 1,17 milhão de quilombolas no País. A situação da maioria ainda é precária: 74,73% viviam em situação de extrema pobreza em janeiro de 2013, de acordo com o programa Brasil Quilombola, da Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial. Falta de saneamento e de energia elétrica também são realidades para os quilombolas. Segundo o relatório, 48,7% deles vivem em casas de terra batida, 55,2% não têm água encanada, 33% não têm banheiro, 15% possuem esgoto a céu aberto e 20% não têm energia elétrica. A dificuldade de acesso a programas de incentivo à agricultura familiar é um dos principais motivos para a manutenção das famílias quilombolas na pobreza. Embora vivam da agricultura e do extrativismo, poucas comunidades reconhecidas possuem título da terra, o que inviabiliza a participação em políticas públicas de incentivo à agricultura familiar.

*Publicado originalmente em Carta Fundamental

ENTENDA MAIS SOBRE: , , ,

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo

Apoie o jornalismo que chama as coisas pelo nome

Os Brasis divididos pelo bolsonarismo vivem, pensam e se informam em universos paralelos. A vitória de Lula nos dá, finalmente, perspectivas de retomada da vida em um país minimamente normal. Essa reconstrução, porém, será difícil e demorada. E seu apoio, leitor, é ainda mais fundamental.

Portanto, se você é daqueles brasileiros que ainda valorizam e acreditam no bom jornalismo, ajude CartaCapital a seguir lutando. Contribua com o quanto puder.

Quero apoiar

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo