Educação

Teatro às cegas

Com peças encenadas no escuro absoluto, grupo propõe experiência multissensorial e inclusiva

Elenco do teatro cego|O espetáculo trata dos abusos cometidos durante a ditadura militar
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Faltam alguns minutos para o início da peça Acorda, Amor! e o espectador aguarda sem saber o rosto das pessoas sentadas ao seu lado na plateia ou a distância que se encontra do palco. Também não poderá ver as feições e gestos dos atores, figurino e cenário quando a apresentação começar. É que um breu profundo toma conta da sala e permanecerá assim até o final do espetáculo. Ao longo de toda a apresentação, nenhuma fonte de luz despontará no ambiente: toda a história se desenrolará em uma escuridão absoluta e no mesmo espaço ocupado pelo público.

Idealizado em meados de 2008 pela Caleidoscópio Comunicação & Cultura, o Teatro Cego traz essa proposta inusitada: ver sem ver. Agregando atores tanto com quanto sem deficiência visual, suas peças estimulam um mergulho no universo dos sentidos. Audição, tato e olfato são estimulados ao máximo, enquanto a visão fica fora de cena. Em Acorda, Amor!, em cartaz desde o ano passado, o período da ditadura militar ganha contornos por meio das canções de Chico Buarque, executadas ao vivo pelo grupo Social Samba Fino, e pela atuação “invisível” de quatro intérpretes que dão vida aos combatentes Natasha, Paulo, Lucas e Cesar. Escondidos em um apartamento, eles tentam colocar suas operações em prática sem levantar suspeita.

A ausência do apelo visual, longe de limitar, parece enriquecer a complexidade do tema. O ruído dos passos pela sala revela a localização dos personagens em cena e ajuda a criar o clima de suspense. O barulho brusco de uma porta se fechando evidencia os ânimos de determinado personagem e o som da água correndo que outro acaba de entrar no banho. Mas nem tudo se resume a informações sonoras: cheiros e sensações táteis são outros elementos usados com frequência. Um cheiro forte de café invade a sala quando os personagens fazem o desjejum e o de comida quando chega o almoço.

Em outro momento, pequenas gotas de água caem sobre a plateia. Uma experiência quase sinestésica que ajudam a transportar o espectador para dentro da trama.“Quando a gente usa esses elementos para interagir com a plateia é tudo pensado de forma a ajudar a dar uma compreensão maior sobre a peça. A gente explora os sentidos para contar uma história”, diz Paulo Palado, responsável pela direção e texto do espetáculo, além de integrar o elenco. “Por exemplo, tem um momento onde o policial venda um dos personagens antes de torturá-lo e fala ‘vamos ver se a escuridão te ajuda a pensar melhor’. Isso também é um convite para a plateia”, explica o dramaturgo.

A inspiração para o Teatro Cego veio de um grupo argentino que já fazia teatro no formato. Após conferir uma das peças em uma viagem ao país, Palado voltou com a ideia de implementar a proposta teatral no Brasil. “A nossa produtora, a Caleidoscópio, sempre teve essa preocupação de desenvolver projetos que tivessem um diferencial não só artístico, mas também social. Quando a gente conheceu esse trabalho na Argentina, vimos uma oportunidade”, conta.

Porém, sem acesso aos segredos por trás das técnicas de sons, cheiros, entre outras estratégias de palco utilizadas pelo grupo portenho, Palado e sua equipe se viram diante da necessidade de desenvolver um método próprio, que ele também não revela por completo. “A gente tem uma equipe da produção que passa com os cheiros perto das pessoas ou troca objetos do lugar, por exemplo. Mas não dá para revelar todos os truques porque se não perde a graça, o encanto. É a mesma história do mágico. Mas a maioria dos efeitos acontece como resultado de pessoas se movimentando em cena sem enxergar, o que envolve muito treinamento. Sem falar da banda, que toca seus instrumentos sem ver nada.”

A estreia do grupo se deu com a peça O Grande Viúvo, em 2012, uma adaptação do conto homônimo de Nelson Rodrigues. A proposta inovadora e a qualidade do trabalho tornaram o espetáculo um sucesso de público e crítica. Para além da experiência artística, Palado percebeu que a peça tinha outros efeitos em seus espectadores. “Quando estreamos, nosso intuito era fazer uma peça de teatro, não um laboratório ou coisa parecida. Mas a gente percebeu que as pessoas saíam do espetáculo muito sensibilizadas, principalmente com a situação dos deficientes visuais”, conta.

Na constatação, o diretor viu a oportunidade para promover uma causa – a doação de córneas e outros órgãos. “Entramos em contato com a Secretaria da Saúde de São Paulo e, depois, com o pessoal do Banco de Olhos de Sorocaba”. Desde então, ao término de cada peça, representantes das entidades aguardam em stands na saída da sala para realizar o cadastro e a carteirinha daqueles interessados em se tornar doadores. “Proporcionalmente, o número de doadores que eles conseguem captar ali é muito maior do que com propaganda, entre outras abordagens. A publicidade não consegue sensibilizar as pessoas do jeito que uma hora de peça consegue”, diz.

Apesar da vertente social, Palado diz que uma das preocupações do grupo é não ganhar o rótulo de “teatro de deficientes visuais”. “A proposta é misturar deficientes visuais e videntes e não transformar os cegos em atração. A gente fala que não é um espetáculo de inclusão, mas de integração.” E o mesmo vale para a plateia, que se vê em situação de igualdade em termos de compreensão do espetáculo, independentemente de sua condição. “Eu não quero que as pessoas venham assistir e achem bom ou ruim só porque sentiram o cheiro ou ficaram no escuro. Quero que elas assistam à uma boa peça de teatro”, finaliza o diretor.

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