Educação

O velho modelo disfarçado de novo

Especialistas criticam a qualidade das aulas online e o método de ensino do matemático Salman Khan, que se tornou fenômeno mundial

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Revolucionário, inovador, transformador e eficiente. Esses são alguns dos elogios que o norte-americano Salman Khan recebeu nos últimos anos de personalidades como o fundador da Microsoft, Bill Gates, do cineasta George Lucas e do criador da Fundação Lemann, Jorge Paulo Lemann. O motivo é a Khan Academy, iniciativa sem fins lucrativos que reúne cerca de 2 mil vídeos educacionais e exercícios interativos de disciplinas como Matemática, Física e Química. Com 6 milhões de acessos mensais, a Khan Academy pretende inverter a lógica da sala de aula e mudar a maneira como o ensino é feito nas escolas.

No Brasil, Khan participou de um evento em janeiro com a presença do ministro da Educação, Aloizio Mercadante, e da presidenta Dilma Rousseff. Na ocasião, o professor, estrela na internet, foi convidado a firmar uma parceria para a realização de pesquisas pedagógicas no País: 600 de suas videoaulas, traduzidas para o português pela Fundação Lemann, deverão ser incluídas nos tablets distribuídos para cerca de 400 mil professores ainda em 2013. O objetivo é que os vídeos também fiquem disponíveis no Portal do Professor, página do Ministério da Educação com conteúdo para os docentes, e na TV Escola. Na região da Grande São Paulo, escolas da rede pública já participam de um projeto piloto que utiliza a metodologia e os vídeos de Khan para ensinar Matemática.

Especialistas em ensino da Matemática, porém, fazem ressalvas à promessa de salvador da educação vinculado ao norte-americano. Para os entrevistados pela reportagem, a iniciativa trabalha com paradigmas antigos, produz vídeos de qualidade heterogênea e pode significar um retrocesso para o ensino da Matemática.

Para Célia Maria Carolino Pires, professora da área de didática da Matemática na PUC-SP e pesquisadora de inovações curriculares na Educação Básica e na formação de Professores de Matemática, os vídeos de Khan estão na contramão do que é discutido hoje em relação à Educação Matemática. Atualmente, especialistas defendem que a disciplina seja ensinada por meio da problematização e da formulação de hipóteses pelas crianças. Os vídeos de Khan, porém, são calcados basicamente no modelo de aula expositiva, na qual os alunos acompanham as explicações do professor na lousa. “Ele repete o modelo que muitos outros professores já fazem em sala de aula. Eu não vejo naquilo inovação”, opina Célia, que foi coordenadora da equipe de elaboração dos Parâmetros Curriculares Nacionais do Ministério da Educação.

A Sociedade Brasileira de Educação Matemática compartilha com a opinião de Célia. “Mais uma vez, o aluno é colocado como sujeito passivo diante da produção de conhecimento. A proposta de Khan reforça a ideia de que a escola não é um espaço de construção de conhecimento, mas sim, de consumo”, afirma o atual presidente da instituição Cristiano Alberto Muniz.

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A trajetória de Salman Khan na educação começou em 2004, dentro de um closet apertado na cidade de Metairie, no estado norte-americano da Louisiana. Foi ali, cercado de livros e com a ajuda de um computador equipado com microfone e webcam, que o filho de imigrantes indianos começou a gravar uma série de vídeos despretensiosos, com o objetivo de ajudar a prima de 12 anos, Nádia. Na época, a menina estava sentindo dificuldades em aprender Matemática na escola. Como ela e Khan viviam em cidades diferentes nos Estados Unidos, a saída encontrada foi usar a tecnologia para encurtar as distâncias.

Com poucos recursos disponíveis, o norte-americano começou a produzir vídeos curtos e simples para explicar conceitos da Matemática para a prima. Em geral, cada vídeo tem, em média, dez minutos de duração e explora um único tema, como adição básica ou números primos. As explicações são oferecidas pela voz de Khan, que escreve e rabisca na tela do computador com a ajuda de um software. Atualmente, as aulas exploram outras disciplinas além da Matemática, como Biologia, Física e Química.

Os vídeos, inicialmente restritos à prima e a um pequeno círculo de conhecidos, caíram no YouTube e passaram a ser acessados por milhares de estudantes no mundo todo. Naquela época, Khan trabalhava no mercado financeiro e já somava graduações no Massachusetts Institute of Technology (MIT) e um MBA em Harvard. Quando as aulas começaram a ficar famosas na rede, Salman Khan resolveu demitir-se e dedicar-se exclusivamente ao projeto educativo.

Em pouco tempo, Khan foi catapultado do closet para os holofotes ao inaugurar a Khan Academy, site que reúne seus vídeos educativos e outros exercícios que podem ser resolvidos online.

No livro Um Mundo, uma Escola – A educação reinventada (Editora Intrínseca), Khan defende que o velho modelo da sala de aula oferece uma forma de aprendizado essencialmente passiva para o aluno, em descompasso com um mundo cada vez mais interativo e dinâmico. Por causa disso, os alunos sentem dificuldade em prestar atenção às aulas e, ao praticar o que foi aprendido em sala de aula em casa, não têm chance de interagir com o professor e com outros colegas.

Para equacionar o problema, o americano propõe que haja uma inversão: os alunos assistem às videoaulas em casa e fazem os exercícios na escola. Assim, a lição de casa tradicional se transformaria em exercício em sala e vice-versa. Parte dessa metodologia já está sendo trabalhada em escolas públicas do estado da Califórnia, nos EUA. Até o momento, o empreendimento de Khan recebeu subsídios que somam 16,5 milhões de dólares de empresas com o Google e de Bill Gates.

No site oficial da Khan Academy, é possível, além de assistir aos vídeos, resolver uma série de exercícios das disciplinas oferecidas. Caso o aluno sinta dificuldades na hora de resolvê-los, o programa utilizado para as atividades oferece dicas e mostra o passo a passo da resolução do problema. Na medida em que soluciona as questões, o site acumula informações sobre o que o usuário aprendeu e quanto tempo utilizou para cada assunto. Os dados são privados, mas as estatísticas ficam disponíveis para o usuário e também para o professor, que pode observá-las individualmente ou por grupo. A versão em português da Khan Academy, porém, dublou cerca de 600 vídeos do norte-americano para o português. Os demais recursos, como o software que gera as estatísticas e os exercícios, estão disponíveis apenas para as escolas do projeto piloto em São Paulo.

“É a transposição de um quadro-negro tradicional para uma tela”, complementa Nilson José Machado, matemático e professor da Faculdade de Educação da USP. Para o especialista, o material produzido por Salman Khan é bastante heterogêneo. “Existem insights criativos e interessantes, sobretudo quando aborda temas de ciência ou de matemática superior. No entanto, quando ele investe nos temas relativos ao professor das séries iniciais, o material chega a ficar grotesco”, avalia.

Diretor-executivo da Fundação Lemann, Denis Mizne acredita que as críticas são válidas quando se olha apenas para os vídeos, mas ressalta que o projeto vai além disso. “Se você olhar só para os vídeos, alguns vão funcionar melhor para alguns alunos e menos para outros, como acontece com todo recurso didático”, defende. “O projeto não é uma aula expositiva do YouTube, é um processo de formação de professores, com uma plataforma que permite a individualização da aprendizagem, em que cada aluno trabalha com o seu ritmo no seu aparelho, em aula dinâmica que permite a colaboração.”

Para o presidente da Sociedade Brasileira de Educação Matemática, a proposta de ensino de Khan é “preocupante” e não traz inovações, além do uso das novas tecnologias como suporte. “É uma ferramenta que favorece a memorização, a absorção de processos ortodoxos e muitas vezes desprovidos de sentido e significado para o aluno”, conclui Muniz.

Na opinião de Machado, os vídeos de Khan poderiam ser utilizados para despertar o interesse e atrair a atenção dos alunos para as ciências exatas. No entanto, ele ressalta que existem centenas de professores brasileiros trabalhando na Educação Básica e produzindo materiais de qualidade igual ou superior à maior parte dos vídeos apresentados pelo guru. “O que falta no Brasil não é um Salman Khan, mas sim a valorização dos professores”, opina.

Na Grande São Paulo, escolas da rede municipal já trabalham com a metodologia e os recursos imaginados por Salman Khan para ensinar Matemática. O projeto piloto, iniciado em fevereiro de 2012, foi implantado pela Fundação Lemann, responsável pela adaptação do conteúdo no Brasil, em parceria com o Instituto Natura e o Instituto Península. O projeto, que começou com apenas três escolas, hoje já atinge 200 turmas. A ideia é que a metodologia, que inclui a utilização de computadores portáteis por aluno, seja utilizada em pelo menos metade das aulas de Matemática oferecidas nas turmas da primeira etapa do Ensino Fundamental. Além dos vídeos traduzidos para o português, o projeto utiliza um software semelhante ao desenvolvido pela Khan Academy e exercícios elaborados de acordo com o currículo de Matemática adotado pela escola brasileira.

A professora Alessandra Canello é uma das quatro docentes de sua escola escolhidas para participar do projeto piloto na Emef Salvador dos Santos, em Santo André, no ABC paulista. Professora do Fundamental I e formada em Matemática, Alessandra conta que a nova ferramenta estimulou a competividade, colaboração e independência dos alunos. “Se eles tinham dúvidas, assistiam aos vídeos ou ajudavam uns aos outros”, conta ela, que passou a se dedicar mais aos alunos com maior dificuldade na disciplina.

*Publicado originalmente em Carta na Escola

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