Educação

Novas famílias, velhos problemas

Apesar do empenho de escolas em aceitar novos arranjos familiares, preconceito entre pais, alunos e professores ainda é obstáculo

Govinda e Adriana com as filhas Nara e Quézia. A família já enfrentou problemas com homofobia na escola das meninas|Govinda e Adriana com as filhas|Laura e o filho Leo já enfrentaram preconceito na escola
que vive com o filho Leo LGBT
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O que é família? A primeira resposta à pergunta relativamente simples é a imagem clássica de pai, mãe e filhos. Mas esse próprio “conceito” já sofreu transformações importantes ao longo da história. Especialistas identificam três tipos de família na cultura ocidental: a tradicional, nas quais o casamento arranjado embutia a ideia de negócio; a moderna, que, a partir do fim do século 18, pauta a escolha do parceiro através do amor e desejo; e as contemporâneas, que se modelaram por uma série de transformações a partir dos anos 1960, tais como o divórcio, o feminismo, os direitos homossexuais, os métodos contraceptivos e a fertilização in vitro.

Elementos que mostram, segundo o livro A Família em Desordem, de Elizabeth Roudinesco, que a imagem da “família Doriana” – aquela que povoava os comerciais de uma marca de margarina nos anos 1990 – é um tipo idealizado que dificilmente faz jus à realidade de hoje. No Brasil, por exemplo, o tripé pai, mãe e filhos vem dando espaço para novos formatos, nos quais mães e pais solteiros, casais homoafetivos, avós e tios cuidadores são os novos protagonistas.

“A família hoje é mais livre, mais verdadeira, mais autêntica. Sua essência não é mais um núcleo econômico e reprodutivo, mas sim um locus da estruturação de um ser”, observa o advogado Rodrigo da Cunha Pereira, presidente do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM). “O casamento não é mais o legitimador das relações sexuais e a reprodução está cada vez mais desatrelada da sexualidade.”

As novas maneiras de se relacionar e a queda de tabus em relação a, por exemplo, orientação sexual levaram a uma verdadeira revolução na composição familiar. Seus ecos são tanto produto da transformação social em curso quanto desafios para setores como as escolas, que ainda tateiam como absorvê-los.

Ainda em um processo de adaptação às novas configurações, as instituições de ensino vêm se esforçando para assimilar alunos cujo núcleo primário foge à forma mais tradicional. A tarefa não tem sido das mais fáceis, revelam mães e educadores. Casada com Débora Martins Gomes desde 2003, a autônoma Thaise Souza, 29 anos, viveu uma situação desconfortável na escola particular em que a filha Ana Luiza, de 7 anos, estudava em Nova Iguaçu, na Baixada Fluminense.

Apesar de informar na matrícula sobre a sua constituição familiar, descobriu mais tarde que a escola mantinha uma educação com base em fundamentos neopentecostais e viu sua filha ser humilhada em sala de aula, quando disse que tinha duas mães e recebeu da colega ao lado o comentário de que aquilo não era de Deus. “Ela chegou em casa aos prantos. Reclamamos, a escola prometeu tomar providências, mas acabou não fazendo nada. Foi um ano difícil, mas decidimos mantê-la até o período acabar”, conta sobre 2013. Decidiu, depois, colocar a primogênita (gerada por ela) em uma escola pública na vizinha Seropédica, onde vive com os outros filhos, Davi, de 5 anos, e Théo, de 2.

A homofobia atingiu de forma semelhante a família de Govinda Lilamrta, 29 anos. Em uma briga na escola, sua filha mais velha ouviu de uma coleguinha de sala: “E sua mãe, que é sapatão?!” “Nara ficou um pouco chateada, mas a professora interveio para elas voltarem a se falar”, conta a chef de cozinha, que é casada com a auxiliar executiva Adriana Bonuzzi de Faria, 29 anos, com quem cria Nara, de 9, e Quézia, de 7 anos. Ambas estudam com bolsa em uma escola particular da zona oeste de São Paulo e são fruto do casamento anterior de Govinda.

Existe vontade de lidar com o novo, mas ainda falta preparo, avalia a tradutora e intérprete Laura Schichvarger, 33 anos, que vive com o filho Leo. Na escola particular onde o garoto de 2 anos estuda em São Paulo, uma das diretoras pediu que Laura levasse o namorado ou uma figura masculina que representasse o “pai” no Dia dos Pais, apesar de já haver dito que era mãe solteira. Além disso, explicou que a escola estava organizando duas atividades: uma xícara feita na aula de artes pelas crianças para os pais e outra, um piquenique no parque com os pais e o professor de capoeira.

Laura e o filho Leo já enfrentaram preconceito na escola Laura Schichvarger, que vive com o filho Leo, de 2 anos. A tradutora já enfrentou problemas com o Dia dos Pais na escola. Foto: Amana Salles

“Hoje, quando se discute o que fundamenta a família e não se parte do princípio de que toda família tem um pai e uma mãe, o ‘presente’ pro pai deixa de ter sentido”, explica Laura. “Além disso, achei as escolhas de homenagem erradas, pois continham uma noção de gênero que não cabe mais. Para comparar, no Dia das Mães eles pintaram um porta-guardanapo e as crianças fizeram aula de culinária para nos oferecer uns comes. É muito aquele modelo anos 1950: ‘Mamãe cuida da comida, papai toma seu café na poltrona’.”

Psicanalista com especialização em criança, adolescente e família, Luciana Pires observa que a sociedade, em geral, costuma ser conservadora no que diz respeito a formatos familiares. “Acho que temos algum apego, um resto da concepção infantil de papai e mamãe, que fica em um lugar mais idealizado”, opina.

“Existe preconceito em todas as classes sociais e todos os tipos de escola. Escola tem, por princípio, um caráter conservador, pois se ocupa da transmissão da cultura, tradição e conhecimento acumulado. Acho curioso que no Dia dos Pais, por exemplo, apresentem uma figura mítica como se fosse o Papai Noel ou o coelhinho da Páscoa”. Ela explica ainda que as novas famílias têm tanto reflexo nos pequenos pertencentes a elas quanto naqueles oriundos de composições tradicionais. “Os novos formatos familiares têm tanto efeito sobre as crianças quanto a composição das famílias heterossexuais tem. O formato familiar dá trabalho para o filho, sempre, seja ele qual for”, esclarece.

A classe social também influi nos arranjos em família. Defensor público na unidade de Itaquera, na zona leste de São Paulo, Peter Gabriel Molinari Schweikert explica que as famílias da periferia, em regra, “são estruturadas na forma de rede e costumam ser ligadas mais por uma obrigação ‘moral’ de solidariedade do que por vínculos de afeto propriamente ditos”, tendo em vista o déficit de políticas públicas na região, como falta de transporte escolar gratuito, por exemplo.

Ele cita ainda a autora Cynthia A. Sarti, que em A Família como Espelho mostra que “as dificuldades enfrentadas para a realização dos papéis familiares no núcleo conjugal, diante de uniões instáveis e empregos incertos, desencadeiam arranjos que envolvem a rede de parentesco como um todo, a fim de viabilizar a existência da família”. Vale lembrar ainda que, em casos de instabilidade familiar por separações e mortes, as crianças deixam de ser responsabilidade exclusiva da mãe ou do pai, para passar a ser de toda a rede em que a família está envolvida, numa espécie de “coletivização das responsabilidades”.

É o caso de Igor Silva, de 8 anos, que vive com a avó, Tamires Silva, 48 anos, e a tia-avó, Soraia Maria Silva, 54 anos, desde o falecimento da mãe e a prisão do pai por tráfico de drogas, há mais de sete anos. Técnica em enfermagem, Soraia conta que a escola pública onde o garoto estuda em Peruíbe, no litoral paulista, sabe quem cuida dele, mas a ideia é não espalhar muito para não haver constrangimento. “A gente não comenta com todo mundo, para não expô-lo. Acho que é a melhor maneira de ele levar uma vida saudável”, explica.

Incomodada com o currículo da Educação Infantil focado em datas comemorativas ao chegar para trabalhar no Centro de Educação Infantil (CEI) Vila Salete, em 2012, a coordenadora pedagógica Josi Rodrigues quis fazer diferente: aboliu tanto o Dia das Mães quanto o Dia dos Pais, para instituir o Dia da Família. “A gente entende que, considerando as diferentes configurações familiares de hoje, não dá mais para trabalhar somente o Dia das Mães ou o Dia dos Pais”, conta. “Há casais homoafetivos, pais solteiros, mães solteiras, crianças educadas por avós, tios, padrinhos. Se ficarmos na ideia daquela família clássica, desconsideraremos as novas para repassar esse preconceito às crianças.”

Além da nova data, que engloba todos os responsáveis por cuidar da criança, Josi busca trazê-los para as reuniões semanais com professores, nas quais promove seminários de formação que levem em conta questões como gênero e homoafetividade. Nos encontros que ocorrem às segundas, terças e quartas-feiras, a ideia é se chegar a um consenso sobre projetos políticos pedagógicos, os chamados PPPs. Foi como se elaborou o Dia da Família, que contou com um sarau de música e boa aceitação por parte dos alunos e cuidadores.

Em São Paulo, as escolas da rede municipal de ensino já são orientadas anualmente, desde 2002, a incluir em seus calendários de atividades duas datas para comemorar o Dia da Família. Algumas instituições da rede municipal, inclusive, decidiram transformar os tradicionais Dia dos Pais e Dia das Mães em “Dia de Quem Cuida de Mim”.

Já a prefeitura do Rio de Janeiro não tem uma orientação específica que vise a assimilação de novas famílias, mas, desde 2012, leva adiante o projeto Rio Escola Sem Preconceito, que tem por objetivo combater a discriminação racial, religiosa, de gênero e sexual. “Acreditamos que o preconceito, na verdade, é um passado não reelaborado”, afirma Kátia Regina dos Santos, do Núcleo Interdisciplinar de Apoio às Unidades Escolares da Secretaria Municipal de Educação do Rio. “E como a gente vai desfazendo preconceito? Colocando em pauta o que historicamente levou à formulação daquela atitude para tentar modificá-la. É nisso que trabalhamos.”

Bombardeado pela bancada evangélica do Congresso no ano de 2011, quando tentou lançar o chamado Kit Anti-homofobia (material didático que visava trabalhar a diversidade sexual e o preconceito, também chamado pejorativamente de “Kit Gay”), o Ministério da Educação (MEC) tenta evitar novo alarde ao comentar ações e campanhas nas escolas e universidades para diminuir o preconceito.

Entre 2011 e 2014, no entanto, o ministério investiu cerca de 30 milhões de reais na formação de professores e profissionais de educação, a fim de combater “a violência sexista, racista e homofóbica, e para promover o respeito e a valorização da diversidade étnico-racial, de orientação sexual e de identidade de gênero”, explicou uma fonte do ministério. Trata-se de projetos políticos, formações, materiais didáticos, como livros, cartilhas e jogos sobre diversidade sexual, que passaram a ser distribuídos de forma mais sutil.

A batalha contra a homofobia, no entanto, parece longe de estar no fim. No dia 10 de março, morreu em Ferraz de Vasconcelos, na Grande São Paulo, um adolescente de 14 anos que estava em coma após ser espancado na escola pública onde estudava, por ser filho adotivo de um casal gay.

Em meio a avanços tímidos, a tendência é que o preconceito comece a ser desfeito a partir do momento em que o “conceito” sobre família for encarado de maneira diferente, observa o defensor Davi Quintanilha Failde de Azevedo. “Estudiosos do direito de família, ou melhor, direito ‘das famílias’, entendem que essa deve ser vista do ponto de vista instrumental, como um lugar democrático de afeto, pelo qual se potencializa a busca individual da felicidade”, analisa o profissional, que atua na área de família em São José dos Campos (SP). “O amor tornou-se valor digno de atenção especial do direito. A afetividade foi elevada a um princípio fundamental, de maneira que o reconhecimento de novos arranjos familiares depende da existência do afeto entre seus membros”, conclui.

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