Educação

Mais voz para os alunos

Baseadas em modelos de gestão democrática, escolas ampliam participação dos estudantes, tornando-os responsáveis pelas decisões do espaço

Cartaz reúne demandas dos alunos|escola democratica
Debater e reivindicar são palavras-chave na rotina da escola Manuel Bandeira.|Demanda dos pequenos: “Eles querem mais elastiquinhos para fazer de pulseira” gestão democracia participação debate voto eleição conselho assembleia|escola democratica. cartaz
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Uma frase escrita a lápis pelas mãos de alguém recém-alfabetizado chama a atenção de quem passa pelo mural de recados do pátio central da Escola da Prefeitura de Guarulhos (EPG) Manuel Bandeira, localizada na região metropolitana de São Paulo.

“Podemos traser liginhas de elástico”, lê-se em um cartaz que leva o título “Precisamos conversar”. Se o domínio da ortografia revela-se incerto, o mesmo não se pode dizer das intenções dos autores. “Eles querem mais elastiquinhos para fazer de pulseira, sabe?”, explica a diretora Solange Turgante.

escola democratica Demanda dos pequenos: “Eles querem mais elastiquinhos para fazer de pulseira”, explica a diretora

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A demanda é a primeira de uma lista que deve se avolumar com o passar dos dias e que será debatida na próxima assembleia escolar – reunião de alunos, professores, gestores e funcionários, de onde saem as decisões que viram regra para toda a escola. “Do cartaz, surge a maioria das pautas que debatemos depois juntos para chegar a um consenso. Por exemplo, se alguém reclama ali que tem muito papel higiênico jogado no chão do banheiro, na próxima reunião nós sentamos e discutimos isso para ver o que está acontecendo e o que pode ser feito”, conta a diretora.

Solange chegou à direção da escola em 2013 e, inspirada por projetos como o da Escola da Ponte, Emef Amorim Lima e Projeto Âncora, veio decidida a criar uma escola democrática. Logo percebeu que o objetivo só seria alcançado se houvesse a ampliação da participação dos alunos e pais nas decisões da escola. Foi assim que debater e reivindicar se tornaram palavras-chave da rotina da Manuel Bandeira, que atende alunos da Educação Infantil e do Ensino Fundamental I.

Além das assembleias-gerais, a escola organiza, uma vez por bimestre, o Conselhinho, um colegiado formado por representantes das turmas, eleitos pelos próprios colegas, que levam as decisões de cada classe sobre determinada pauta para os gestores. “A ideia é que as crianças tivessem mais autonomia e fossem protagonistas de seu estudo, aprendizagem”, conta. As pautas debatidas abrangem desde o material adquirido pela escola até as atividades pedagógicas a serem realizadas. Um modelo que se aplica a todas as turmas, do Maternal ao 5º ano.

A pouca idade dos alunos, longe de ser um empecilho, foi encarada como propícia para trabalhar a representatividade e outros valores democráticos. “Tem muita gente que diz ‘como assim, eles, tão pequenos, vão criar as próprias regras?’ Mas a verdade é que quando são eles que criam, acabam obedecendo mais, porque partiu do comprometimento deles”, diz Solange. Quando a turma não consegue chegar ao consenso, o conflito também é levado para a reunião. “Eles contam que metade da turma quer isso e a outra metade aquilo, e dialogando a gente tenta encontrar uma solução.” Já foram decididas dessa maneira a aquisição dos brinquedos do parque, as barracas que iria ter na festa junina e até mesmo o modelo de avaliações.

“No ano passado, eu fui escolhido representante”, conta Maykon Reynan Fernandes Cavalcanti, de 10 anos, sem conseguir esconder o orgulho. “Então eu perguntava para todo mundo da sala o que eles queriam melhorar, quais eram as sugestões ou que queriam aplaudir. Aí, anotava tudo e levava para o conselho”, explica o menino, que ainda não se decidiu se vai se candidatar para a vaga esse ano. “Eu gostava, era bem legal, mas também dava trabalho. Tudo que acontecia de errado meus colegas chamavam ‘Maykonnn, está acontecendo isso e isso’”, lembra.

Lincoln Dias Felix, também de 10 anos, diz gostar do novo modelo baseado na representatividade por ser mais prático e resolver as questões de forma mais direta. Para ele, é mais simples localizar e falar com o representante de sala do que com os gestores. “Teve um mês que a gente falou para o representante para ver se nós podíamos sair da sala sozinho para ir no banheiro. Aí teve a plaquinha de ocupado e livre. Quando a pessoa ia no banheiro a gente virava a plaquinha e saia sem precisar pedir para o professor”, conta. Para o professor Rodrigo de Mendonça Emidio, é esse tipo de atitude que pretende ser estimulado. “A ideia é que eles sejam preparados para enfrentar o mundo. A gente precisa formar pessoas que possam tomar suas próprias decisões e gerir sua própria vida. Então, nesse sentido, essa maneira dá muita autonomia.”

Professora de Artes na escola, Jaqueline Oliveira lembra do desafio inicial que foi implementar a gestão democrática. “Mexer na sua prática sempre causa uma certa insegurança, instabilidade. Mas eu acho muito válida qualquer proposta que coloque em xeque aquilo já engessado”. Da maneira como as coisas vêm acontecendo, diz, já são percebidos muitos frutos, principalmente, no sentido do diálogo. “A gente vê crianças trazendo coisas que afligem seu universo e que, para nós, adultos, parecem tantas vezes banais e não percebemos. E conversar sobre aquilo torna tudo mais leve.”

Pedagogia da escuta

Mas é possível ter uma escola mais democrática atendendo alunos de 0 a 3 anos? O CEI Suzana Campos Tauil, localizado na zona sul da cidade de São Paulo, é prova que sim. “Apesar de nós não termos a participação direta da criança, por conta da idade, nós temos a escuta da voz da criança. A gente leva em conta que todas têm saberes e, mesmo que não falem, elas nos mostram de diversas formas o que elas querem e o que precisam”, explica a diretora Márcia de Castro.

Para isso, a instituição desenvolve atividades e estratégias que possibilitem esta percepção, desde com os bebês até os mais velhos. “Por exemplo, procuramos comprar os brinquedos que as crianças gostam. Ontem mesmo veio uma criança aqui e ficou brincando com esse segura-porta em formato de tartaruga da minha sala. Aí pensei: por que não comprar vários desses segura-portas para eles brincarem? Eles gostam, estão me dizendo isso. Então trabalhamos com essa escuta sensível em cima do que eles nos mostram”, explica Márcia.

Há também rodas de conversa, um exercício de ouvir o outro, dar opiniões e contar casos. “É tão interessante porque eles trazem histórias e mais histórias. Então, às vezes, a gente aproveita a roda e pergunta ‘o que vocês estão precisando? o que a gente pode comprar?’”, conta a diretora. Foi assim que a equipe descobriu que os pequenos queriam os pratos e formas de alumínio, usados para brincar nos tanques de areia, também nos espaços internos.

Toda esta autonomia dada aos pequenos, acompanhada da percepção de que o espaço pertence a eles, tem se traduzido em uma série de benefícios como, por exemplo, a capacidade revelada de fazer a leitura de papéis sociais dentro da escola. “Eles sabem para quem pedir tal coisa, percebem os movimentos que ocorrem aqui dentro. As crianças nesta idade são muito capazes. Por isso, vejo que é desde a primeira infância que construímos a democracia e nas pequenas coisas. Se você não as escuta, perde esse primeiro exercício de interação com o outro”, diz.

Para Ligia Maria Leão de Aquino, professora da Faculdade de Educação e do Programa de Pós-graduação em Educação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), experiências como estas têm o potencial de desenvolver nos pequenos princípios e práticas solidárias. Além disso, do ponto de vista cognitivo, possibilitam a apreensão da capacidade de argumentação, debate e negociação, que pode estar presente desde situações cotidianas como escolha e partilha de brinquedos e espaços.

“A criança é estimulada a compreender outros pontos de vista, descentrar de sua perspectiva, compreender uma segunda e, em geral, construir uma terceira perspectiva que articule as várias envolvidas no embate”, explica. Isso permite um pensamento mais amplo e flexível, capaz de questionar e de produzir respostas, ao invés de apenas obedecer e executar o que outro determina. “Em uma escola democrática, a obediência – intelectual e moral – se dá por compromisso, por responsabilidade, no sentido dado pela participação do sujeito na decisão. Não é uma obediência cega”, conclui.

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