Educação

A rede de intrigas do Colégio Bandeirantes

Vazamento de arquivos em colégio tradicional de São Paulo leva à reflexão sobre o que os professores falam sobre seus alunos

Colégio Bandeirantes
Informações pessoais de alunos estavam em área restrita do site do colégio. band colégio bandeirantes vazamento invasão site informações pessoais exposição aluno intriga são paulo
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Casos de violência, o divórcio dos pais, a aluna que engordou 10 quilos, o tipo de roupa usado por outra, episódios de depressão ou a orientação sexual dos estudantes. Assuntos delicados sobre a vida de adolescentes acabaram vindo à tona após o vazamento de falas de professores sobre os alunos no Colégio Bandeirantes, uma das instituições de ensino particular mais tradicionais de São Paulo.

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O caso levanta três questões pertinentes a todas as escolas: esses assuntos deveriam ser tema de reunião de professores? Cada fala de um educador para um grupo fechado deve ser anotada? A internet, ainda que com sistemas de segurança, pode armazenar informações íntimas sobre educandos? A direção do colégio responde que sim, sim e sim. Mas especialistas em psicologia escolar defendem o “não” como respostas, tanto para evitar feridas abertas, como ocorreu, quanto para não perder o foco no aprendizado com “diagnósticos” que não cabem ao professor.

O caso no “Band”, como o colégio é conhecido, ocorreu na noite de 15 de março. Um aluno conseguiu invadir uma área privada para professores, dentro do site da instituição de ensino, e fez um vídeo explicando aos colegas como fazer o mesmo. Assim, várias páginas de “fichas” de estudantes foram digitalizadas e compartilhadas pela internet. Em cada uma delas havia em negrito o nome do professor seguido de sua observação sobre o estudante. Tudo que foi falado ao longo de cinco anos pelos educadores em reuniões pedagógicas era anotado por um escriba e arquivado exatamente como foi dito.

“Foi um teatro de horrores”, resume o próprio diretor-presidente do colégio, Mauro de Salles Aguiar, sobre a repercussão do caso e o clima na escola nos dias seguintes, com alunos chorando, meninas com queda de cabelo e até receio de tentativa de suicídio.  O diretor culpa a “falta de desenvolvimento moral” do adolescente que conseguiu furar a barreira de proteção online e disse que nada mudará na rotina da escola, mas que está investigando os envolvidos.

O aluno chegou a ser suspenso por oito dias e processos jurídicos foram abertos contra ele. A postura revoltou os colegas, que fizeram um protesto e conseguiram a realização de uma assembleia na escola para expor seus argumentos: se o estudante errou em compartilhar, também errou a instituição e a empresa de serviços online, responsáveis pela brecha.

“Adivinha se eu fiquei mais chateada com o fofoqueiro ou com quem falou?”, comentou uma das alunas, que não quer se identificar para não se expor ainda mais. A instituição entendeu a argumentação e reduziu para quatro dias a punição, mas manteve os processos e investiga outros envolvidos. “A escola não teve má-fé. Ele, sim. A maioria esmagadora das mensagens que recebemos de familiares e ex-alunos é de apoio”, comenta o diretor.

A coordenadora de orientação educacional do Band, Vera Lúcia Cruz Malato, afirma que é preciso armazenar as exatas frases dos educadores e acompanhar ao longo da história para ser justo no futuro. “É impossível imaginar que os professores saberão do histórico dos 2,6 mil alunos matriculados ao ano e não é possível saber o que vai ser necessário no futuro. É tão importante termos o histórico arquivado, que vamos correr o risco”, diz.

O único erro que a direção do colégio admite é de que alguns termos são impróprios. A escola já investe em uma formação para que as colocações sejam cada vez menos pessoais e mais profissionais. Para o diretor, porém, algum caso, entre os milhares de comentários sempre vai existir. “Buscamos o respeito e a adequação, mas errar é humano”, diz Aguiar.

A consultoria para trabalhar a pertinência do discurso dos professores em relação aos estudantes no Band é orientada, desde o ano passado, pela professora de Psicologia Educacional da Faculdade de Educação da Universidade de Campinas,Telma Vinha, um dos nomes mais respeitados na área. Diferentemente da direção, ela não acha necessário anotar ipisis litteris o que é dito ou mesmo manter os arquivos disponíveis em sistema online, mas defende que o principal é mudar a fala.

Telma afirma que a cultura de anotar exatamente as considerações feitas por cada um é do colégio e “que não faria isso, por exemplo, na Unicamp”. “As reuniões bimestrais eram feitas para orientar o aluno. Um escriba anota tudo porque eles fazem isso sempre. Chegaram a me mandar o que eu disse em cinco reuniões, mesmo que tenha sido tudo igual”, comenta. “Questionei, mas disseram que seria complicado escolher o que entra e o que se muda”, conclui.

De toda forma, para ela, o principal é a ética profissional e o estudo do discurso para mudar o olhar sobre o aluno. “O educador não pode dizer que alguém é nojenta, independentemente de isso ser registrado. Ele tem de mudar a maneira de ver o problema. Falar de fatos”, comenta. Sobre o uso da Internet como arquivo, ela exemplifica novamente com o cuidado que toma com os próprios alunos. “Algumas anotações, apesar de serem feitas para ajudar, podem ser perigosas. Se eu tenho uma orientanda com problemas no casamento, por exemplo, e escrevo isso no meu controle, para eu ter em mente, preciso redobrar o cuidado para um dia não machucá-la em vez de ajudar. Isso fica só comigo.”

A professora do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, Adriana Marcondes, também acha que cabem reflexões tanto na questão do discurso, como no registro e na disponibilidade online. Ela entende que a escrita feita por um profissional é um instrumento válido para organização do pensamento, mas tem de ter a individualidade de um diário. “Aí é seu, você põe o que quiser no papel, mas não é uma comunicação”, afirma.

No caso específico, em que um escriba era responsável pelas anotações, ela defende que o entendimento da conversa seja negociado. Para ela, qualquer anotação é uma interpretação e deve-se dar direito à revisão e anotar o fruto do debate. “Algumas palavras podem ser desnecessárias e outras substituídas. Qual o mérito de anotar algo que alguém não queria ter dito?”, opina.

Assim como Telma, porém, ela acha que o ponto principal é avaliar se o que se diz é pertinente para a finalidade de uma escola, ou seja, o aprendizado. “Se uma criança convulsiona em uma escola com um trepa-trepa, isso interessa. A professora tem de saber para ficar por perto ou evitar. Agora, para que importa saber que ela é adotada?” Para ela, há uma moralização da Educação e uma tendência de deixar diagnósticos nos escritos.

A educadora Débora Vaz, que participou da produção de materiais de formação para o Ministério da Educação e é diretora da Escola Castanheiras, acha que o vazamento no Colégio Bandeirantes é um alerta geral. “Podia acontecer com qualquer escola”, conjectura Débora. Psicopedagoga, ela se debruça sobre os termos usados por sua equipe e afirma que é comum falas “interpretativas”. “Acho muito complexo um educador dizer que o aluno está deprimido ou que um determinado fato ocorreu por ele estar passando por uma situação qualquer em casa. Pode ser, pode não ser. A gente tem de olhar para o que está acontecendo no processo de aprendizagem dele, que é a nossa área.”

Para ela, a formação do professor inclui fazer tais considerações na reunião, no momento em que o docente começar a interpretar questões pessoais. Com isso, as anotações arquivadas seriam atas, a partir do que realmente foi constatado como pertinente. “O que se escreve é diferente do que se fala. Se for assim, não há problema em um dia acessar um arquivo com um problema superado”, exemplifica. Já anotações que contenham julgamento, podem sempre abrir feridas.

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