Educação

A escola tem um papel fundamental para romper com a cultura de estupro

Autores de ‘Diferentes, não desiguais’ defendem que escola inclua questões de gênero em seus planos pedagógicos

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Em um complexo de crenças que encoraja a agressão sexual masculina contra a mulher, nossa sociedade abraça “uma cultura que condena e celebra o estupro”, já alertava a feminista negra Bell Hooks, no livro Transforming a rape culture, de 1991. Ou seja, ao mesmo tempo em que condenamos a cultura do estupro, alimentamos-a ao colocar o corpo feminino como desejável e vulnerável, como um objeto a ser consumido.

A escola, nesse contexto, é um importante papel para romper com esses valores, avaliam Michele Escoura, Beatriz Accioly Lins e Bernardo Fonseca Machado, que acabam de lançar o livro Diferentes, não desiguais – A questão de gênero na escola (Reviravolta/ Cia. das Letras).

“Um ponto central da discussão é que os meninos precisam ser ensinados a respeitar suas amigas, e não as meninas serem proibidas de usar short. Se um garoto fica sem camisa, isso não se transforma em um risco à integridade dele. Mas por que é um risco para uma menina ela se vestir com short curto?”, observa Michele, doutoranda no Programa de Ciências Sociais da Unicamp. “Se a escola é o espaço socialmente privilegiado para a reflexão e os novos aprendizados, então é preciso considerar a inserção desse tema em seu currículo”.

Afinal, observa Beatriz, desde criança somos bombardeados com a ideia de que meninos podem fazer determinadas coisas e meninas não. Que meninos são mais agressivos e corajosos, e meninas mais recatadas e delicadas. “As questões de gênero sempre estiveram dentro da escola. De uma fila dividida entre meninos e meninas, a um menino ser proibido de chorar na frente dos colegas ou uma menina ser reprimida ou assediada por usar um short”, pontua a doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da USP, que montou recentemente a Rede Feminista de Juristas feministas para auxiliar mulheres vítimas de violência de gênero. “Estamos falando de regras de gênero que já estão em prática na escola. E queremos mostrar no livro que formas de dividir garotos e garotas vistas como ‘naturais’ estão, na verdade, baseadas em desigualdades profundas que restringem muito possibilidades de aprendizado e acabam por reproduzir hierarquias”.

Também pesquisador no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da USP e autor do livro, Machado afirma que o primeiro passo é reconhecer que muitas escolas reproduzem e ensinam regras de gênero para, a partir daí, questionar: o que vamos ensinar sobre o que é ser mulher ou ser homem? “Vamos continuar ensinando que meninos são insensíveis, que os homens têm uma sexualidade incontrolável e, por isso, podem assediar as meninas?”, contesta. “Vamos ensinar que se uma menina for assediada, a culpa é do short que usa? Vamos continuar perdendo gerações de garotas que poderiam ser as novas melhores jogadoras de futebol do mundo?”.

Machado explica ainda que a escola, ao falar de gênero, não busca doutrinar as crianças, mas proporcionar que pensem a respeito das diversas formas possíveis de ser. “Precisamos ampliar as possibilidades de aprendizagem das crianças, apresentando, então, aquilo que a sociedade não apresenta tão automaticamente: outras cores, outros brinquedos, outras brincadeiras e outros papéis”, afirma ao lembrar que a escola não é um lugar apenas de reafirmação de tudo o que já está no mundo, mas também de descobertas de coisas novas.

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No livro, lançado no sábado 4, os autores fazem uma pesquisa interessante para o educador, ao trazerem um material sobre como o processo de industrialização do século XX fez com que professores homens fossem retirados das salas de aula e levados para postos de trabalho recém-criados nas fábricas. Ou seja, o quadro que temos hoje de mulheres sendo a maioria entre professores é resultado de um processo histórico, assim como a ideia de que as mulheres são mais apropriadas para o magistério ser fruto de uma construção social.

Os autores lembram, por exemplo, que no início do século XX mulheres brancas de classe média e da elite não podiam assumir postos de trabalho fora do ambiente doméstico e tinham de dar atenção apenas a temas como o cuidado da família, a criação das crianças e a organização da casa. Com o número de trabalhadores migrando das salas de aula para a indústria, a associação do ofício de magistério com as ideias de cuidado com as crianças teria aberto caminho para as mulheres os substituírem em sala de aula.

Por serem mulheres de classes sociais mais elitizadas as que entraram na profissão em um primeiro momento, lembram, seus salários eram baixos e considerados um dinheiro extra. “A mão de obra feminina seria apenas um ‘reforço’ ao rendimento da família, o que contribui para os baixos salários de professoras e professores hoje, ao lado de fatores como o sucateamento do ensino público durante o regime militar”, diz Michele.

Na esfera econômica, o Censo do IBGE de 2010 mostra o resultado desse processo: educadoras recebem salários em média 28% inferior ao dos homens educadores, ainda que elas sejam responsáveis por ocupar 83% dos cargos. Na arena cultural, a frase de Paulo Maluf simboliza o pensamento por muito dominante: “Professora não é mal paga, é mal casada”, dizia em 1981 o então governador de São Paulo.

É contra essas heranças, concluem os autores, que a escola deve ser encarada com um papel social de formar cidadãs e cidadãos reflexivos, críticos e aptos a construírem uma sociedade mais justa e aberta a novas estratégias possíveis. “A primeira ação de grande importância é a inclusão de temas como gênero e diversidade no Projeto Político Pedagógico da escola, que tem autonomia para construir seus princípios e desenhar seus planos de ação”, observa Beatriz, ao ressaltar a importância da família nessa construção.

“Uma segunda etapa seria um esforço para formação do corpo docente e da equipe técnica escolar com foco nisso. Muitas universidades sequer incluem o tema gênero e diversidade na grade obrigatória dos cursos de formação e licenciatura. Outra frente seria com os próprios estudantes em sala de aula, ao estimular debates, pesquisas e usar qualquer caso de discriminação que ocorra dentro ou fora da sala como oportunidade para retomar o assunto.”

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