Educação

O caso Peppa: racismo ou censura?

Escritora e doutora em antropologia social expõe contradições do caso do livro infantil Peppa, retirado do mercado pela editora sob acusação de racismo

Apoie Siga-nos no

Por Heloisa Pires Lima

O acaso

De repente, a obra Peppa (2009, BrinqueBook) de Silvana Rando entrou na ordem do dia. Contribuiu para o destaque o canal da estilista Ana Paula Xongani que resenhou (2016) o que a incomodava na obra, com a chamada Peppa, não! Mais recentemente, motivado pela mesma indignação, o historiador Carlos Machado refez a postagem do vídeo que viralizou, multiplicando defesas e ataques acalorados. Como desfecho, a autora solicita a retirada de circulação do livro.

Leia mais: Peppa será retirado do mercado após acusação de racismos

 O livro não é racista

O enredo apresenta a protagonista de cabelos fortes e crespos submetida a imposições estéticas. A autora desconstrói o mecanismo da publicidade agindo na cabeça da menina. Para o cabelo naturalmente forte surge o desejo de torná-lo macio e sedoso cuja transformação se dá pelo alisamento das madeixas. A mudança traz um conjunto de impedimentos. Tantos que ela retorna aos fios naturais e à felicidade.

O livro é racista 

A ilustração apresenta uma figurinha de pele clara e cabelos crespos. A redação, no entanto, alude ao tipo carapinha. O tratamento do cabelo e do tema vai construindo associação do crespo como palha de aço. A personagem busca o macio. Pois o contrário de macio não é forte e sim, duro. Dessa maneira, as entrelinhas retomam achaques racistas do passado que impactaram muitas gerações. Outra sequência veicula a mensagem da cabelereira preferir o liso em detrimento do crespo o que reintroduz, para uma nova geração, hierarquias entre modelos de humanidade baseados em fenotipias.

Infância e sociedade 

Toda a produção para crianças seja alimento, brinquedo, remédio ou tudo o mais tem a responsabilidade adulta por trás. Os livros não estão fora desse alcance. Tintas que fazem mal à saúde não podem ser usadas num objeto que o bebê leva à boca, por exemplo. E caberia algum cuidado relacionado ao conteúdo disponível para a infância ou, tudo vale?  Saber o que leem nossas crianças é uma prerrogativa própria de estudos ávidos na compreensão desse hábito implicado em questões que vão desde as manobras do consumismo, a influência de pessoas ou midias ao redor de uma faixa-etária específica ou mesmo diferenciais em termos de gênero, grupo sócio-econômico e etnicidade. Não pelo olhar inquisidor, mas, pela produção de conhecimento da área nesse vínculo. E puxando mais estreitamente para o literário, qualquer autoria, independente do público que se supõe estar dirigida, carrega infinitos aspectos para o analista se deter. O contar uma história para crianças pode ser avaliado quanto à ludicidade, por facultar a imaginação e todos os demais critérios elencados por especialistas. E, um deles é o contexto que produziu a peculiar expressão. Nem os contos clássicos europeus podem ser vistos como guardiões de conteúdo essencializado. As diferentes versões variam na infinitude das temporalidades cruzadas com as diversas geografias. Uma mesma princesa pode ser representada por diferentes leituras. A audiência interfere no sucesso, ou não para a forma disponível para ser percebida.

Relações raciais e mercado

Também o setor editorial não está do lado de fora de uma sociedade extremamente racista, porque desigual. As marcas identitárias produzidas para vantagens e desvantagens naturalizadas para uns e outros estão gravadas nos livros. Livros resguardam a memória da forma como as humanidades foram concebidas. Índio bôbo, figura de mulher submissa, e toda uma leva de estereotipias, clichês, preconceitos e racismos. E o que isto tem a ver com a materialidade dos índices sociais recolhidos de tempos em tempos? A narrativa ficcional oferece elementos para o imaginário sendo uma janela para a percepção dos mundos e da vida. Basta supor a convenção dos seis continentes, sob a caracterização idealizada dos modelos de humanidade de cada parte. Nessa perspectiva, os repertórios de origem europeia são muito mais presentes para crianças brasileiras. Óbvio! Porém, um país de maioria negra e de nativos indígenas obriga a infância a crescer espelhada apenas por uma quase absoluta menção continental nos livros. Todavia, a especificidade africana, continente de religião à cabelo ruim, nunca deixou de habitar as bibliotecas. Sobremaneira o argumento cultural, recorrentemente, a exibe como perdedora social sob poucas chaves emocionais. Oras, o velho enigma se a realidade muda a representação ou se, a representação muda a realidade entrou em cena.

A zona de conforto do circuito editorial

A Lei 10639/03 responde a demanda das lutas negras e vem com o objetivo de refazer o imaginário acerca da origem africana e indígena, estendida, desde então, para todas as demais diferenças. As bibliotecas aliadas de políticas públicas buscam oferecer materiais de apoio para criar ambientes educativos antirracistas. A exploração artística do tema, ilustrações isentas de estereótipos, levar a perceber o protagonismo da história negra, contribuir para o fortalecimento de uma identidade positiva na associação da origem africana, entre outros, passaram a ser critérios e contrapontos ao excesso dessa ausência no passado. Os editores, de modo geral, ignoravam leitores negro-afrodescendentes, da mesma forma que mantinham preconceitos relacionados à autoria negra, ponto de vista bastante excluído do circuito. O apoio de uma política pública respaldada por legislação impactou o mercado de modo extraordinário. Aquela vida ordinária de enxergar um leitor homogêneo assim como o espelho oferecido, mudou. A zona de conforto para as editoras –  não a totalidade, porque sempre haverá editoras de ponta – não enxergava as relações raciais, de poder incrustradas na manutenção conservadora a conduzir as publicações.

A liberdade de expressão

Oras, o literário não pode ser compreendido como mera dinâmica de mercado. Sem negá-lo, a imposição de uma obra definida nas estratégias de marketing com poderes financeiros, sobretudo os atuais de larga escala, estabelece, de fato, uma espécie de censura. A arte no escopo das minorias, tem poucas chances para concorrer. A necessidade de equalizar o acesso desde a produção até a ponta final onde se encontra quem lê, deveria ser a mais importante defesa como liberdade de expressão. Esta é uma questão da modernidade no seio das sociedades globalizadas. O ajuste é o que as distancia de barbáries perpétuas. A autoria literária de quem habita a ilha de um rio no continente africano enriquece como esta possa ser percebida. Ou as diferentes respostas pra questões humanas como a morte. Ou o repertório do Jequitinhonha com sua densidade. Ou,..

O aspecto geracional

O livro Peppa, não a porquinha, passou pela observação de analistas desde seu lançamento. Ele foi bem avaliado como material anti-racista. Porque a narrativa carrega, de fato, uma ambiguidade. Aparentemente, ele agrada pelo humor, pela história singela, pelo repertório do cabelo que vinha crescente como item relevante no empoderamento de mulheres crespas. Todavia, o olhar crítico também detectou os problemas hoje mais bem conhecidos. A indignação e o indicativo de racismo veio através dos mediadores dessa leitura realizada há tempos. O sucesso do canal e a viralização se deu porque a crítica já fazia sentido na Educação cujas iniciativas se tornaram representativas. A problematização de Peppa representa o limite a uma naturalização. O rei está nú pelo olhar de dentro, por quem batalha para não deixar instalar antigas fórmulas  racistas às novas gerações. Uma geração de mulheres empoderadas que abriu um espaço de produção de bens a valorizar sua identidade é antenada ao que possa contribuir com essa trajetória e renega o que ameaça a conquista.

Ocupando as mídias

A comunicação em rede traz como dado, novas formas de produzir e divulgar uma produção. Por exemplo, a hegemonia de uma rede Globo de televisão exclusivista, se nela não aparecia, não existia. Isso forjou os não incluídos como ângulo para a formação de opiniões a criar seus próprios canais. De repente uma publicação no Youtube renovada no compartilhamento que teve mais de 302 mil visualizações se torna um horizonte a derrubar a tranquilidade do circuito editorial. Ampliando ainda o escopo de visão, envolvidos no caso não estão apenas a escritora e a youtuber. Atrás delas, escolas, palestras, programas televisivos ou artigos sendo este, mais um deles. Também as editoras que investem e se beneficiam com o sucesso ou arcam com o prejuízo de suas biobliografias, o livreiro abastecido por expectativas, os avaliadores educacionais em seu relacionamento com os acervos, o consumidor não, necessariamente, especialistas mas, crentes na qualidade de um aparentemente ingênuo exemplar. E agora? Qualquer insatisfação pode promover outra retirada de circulação? O receio não pode perder de vista que relações raciais é um debate para toda a sociedade. Impedir que ele aconteça atacando, de modo virulento, desqualificando a crítica, é como culpar a vítima exercendo uma opressão.

Censura

A reação virulenta por parte de alguns mostra o quanto o momento atual é avesso à escuta. A prevalência de pensamentos extremistas no poder parece estimular em nós o que há de pior. Por sua vez, a intenção de associar o caso Peppa aos desatinos promovidos por correntes partidárias de direita só é compreensível na necessidade de elucidar a diferença entre elas. Ou pelo alerta de uma não cair no mesmo terreno que a outra. Necessariamente é importante trazer à baila a discussão sobre o politicamente correto. A expressão, grosso modo, deixou de fazer vistas grossas para o quanto o cotidiano encobria e solidificava estereótipos condutores de manutenção  de privilégios nas práticas de sociabilidade. Noutra ponta, o chamado politicamente incorreto reivindica externalizar os preconceitos sociais sem receios de nenhuma ordem. Se houve um tempo em que briga de marido e mulher ninguém botava a colher, pais podiam maltratar filhos, assédios seguiam naturalizados, foi o debate público que orientou as mudanças. O retorno ao passado também representaria o inconformismo no avanço desses direitos. A semântica perpetua no dia-a-dia pequenas discriminações acumulativas assim como qualquer tipo de  humor incorreto envolvendo  anti-semitismo, islamofobia, homofobia, situações de estupro, racismo em várias dimensões, machismo e outras formas de degradação da dignidade humana. Quando problematizados se tornaram mais atentas para evitar, enfim,  tornar a linguagem menos ofensiva para alguma particularidade pessoal ou de grupo. Já o estandarte incorreto costuma ser usado por linhas políticas extremamente conservadoras que organizadas atacam em bando os críticos de discriminação, amparando os discursos de ódio e posturas discriminatórias como o imaginário racista e sexista.

E o histórico dos movimentos negros sabe o quanto a denuncia de racismos foi taxada como censura. Todo o debate elevado sob princípios democráticos sendo o tema que for,  implica pontos de vista que se encontram numa mesa de pauta. Os argumentos, em disputa, garantidos em voz e escuta, redimensionam percepções. O contrário seria o silenciamento forjado pela opressão. As prateleiras sempre estiveram cheias de livros racistas causando uma nevralgia intermitente e de longa data. Quando um dos títulos é problematizada, uma sequência a desqualifica, eu sei, você não sabe. Outra argumenta que não há problema do racismo circular nos primeiros anos porque o conteúdo pode ser motivo de conversas e a violência, oras bolas, fortalece a personalidade. Não leva em conta que a associação criada para o cabelo de Peppa fomenta estigmas, facilita apelidos, recupera marcas prejudiciais por promoverem constrangimentos que atingem, sobremaneira crianças crespas, em especial negras, no ambiente escolar. O material dificulta a quebra de hierarquias entre padrões caucasianos e afrodescendentes atingindo toda uma comunidade que se identifica nessa origem além de facilitar estereotipias para a percepção sobre a origem negra por não negros. Acaba sendo auxiliar, enquanto mensagem, na formação de pensamentos xenófobos. É necessária a atenção para não reunir o grotesco na construção do corpo negro.  As narrativas, em Peppa não contribuem para a valorização e autoestima na construção de identidades históricas sabendo que estas resultam de processos construídos socialmente. O leitor criança entre a palavra e a imgem, não apenas gosta ou não gosta da história. Hoje ela tem canais literários onde difunde as próprias resenhas. Sobre a Peppa, há inúmeras no youtube. Uma delas, usa uma peruca que multiplica o bom humor do texto impresso. Certamente, a platéia deve rir junto com ela. E assim, enquanto a ridicularização do fenótipo segue, a criança negra não expressará que se sentiu ofendida. Apenas internaliza o desconforto e, pode até reproduzir o achaque como rito de elaboração.  É de se esperar de um leitor de pouca idade ter defesas para enfrentar formação de ideias racistas ou machistas ou, homofóbicas, ou anti- semitas, islamistas, e etc, e etc? Estas são questões adultas e da responsabilidade delas intervir, ou não.

Heloisa é doutora em antropologia social e autora de títulos para jovens leitores, área sobre a qual também pesquisa.

ENTENDA MAIS SOBRE: , , ,

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo

Um minuto, por favor…

O bolsonarismo perdeu a batalha das urnas, mas não está morto.

Diante de um país tão dividido e arrasado, é preciso centrar esforços em uma reconstrução.

Seu apoio, leitor, será ainda mais fundamental.

Se você valoriza o bom jornalismo, ajude CartaCapital a seguir lutando por um novo Brasil.

Assine a edição semanal da revista;

Ou contribua, com o quanto puder.