Educação

Bairro da Liberdade concentrava espaços de tortura e morte contra os negros na escravidão

Pesquisadora explica o que são e onde estão os espaços físicos da memória escravocrata na capital paulista

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O que hoje conhecemos pela região da Liberdade, na cidade de São Paulo, já foi o centro institucional por onde passava o negro no período escravocrata.

O tradicional bairro é popular pelos restaurantes japoneses, lojas de produtos orientais, e a presença imigrante – essa já de todos os cantos. O que nem todos sabem é que a região sepulta um passado traumático.

O nome correto da Igreja de Santa Cruz, também conhecida por Igreja das Almas e localizada no ponto central do bairro, é Igreja da Santa Cruz dos Enforcados, pois era exatamente naquele local onde senhores e seus capangas cometiam a punição mais severa contras os negros.

A missão da pesquisadora Patrícia Oliveira é encontrar a memória trágica dos negros até a virada do século XX na maior cidade do país. Encontrar porque esses locais não por acaso foram apagados, apontando assim as histórias negligenciadas, as pessoas indesejadas, e formando o caldo daquilo que pode ainda ser a base de reparações históricas.

Carta Educação: O que são os Lugares de Memória?

Patrícia Oliveira: Adoto a definição do autor Pierre Nora para indicar que os lugares de memória são uma construção histórica, uma vontade de memória. Eles auxiliam a revelar processos, interesses, vivências, e possuem valor como documentos. Esses lugares não são lugares naturais, mas são revestidos de uma carga de memória, e analisar esse revestimento e essa carga faz parte dos meus interesses de pesquisa para um tema muito específico: os lugares de memória e consciência sobre a escravidão na cidade de São Paulo. Aqui me cabe não apenas estudar o lugar onde ocorreu o fato, mas o que ocorreu a esse lugar depois do fato: quais às transformações pelas quais passou e se restaram camadas de materialidade dessa memória, por quais pressupostos, interesses e motivações.

CE: Qual a relevância desses lugares?

PA: Penso que além da necessária reparação simbólica feita aos que foram vitimados com o tráfico transatlântico, com a escravidão no solo brasileiro, é importante concentrar ainda mais estudos e análises sobre a dimensão humana do que foi a escravidão no Brasil. É importante por duas questões mais diretas: contribuir para um debate concreto sobre reparação histórica multifacetada, que abrange desde políticas afirmativas e permeia os campos da memória e da justiça. Tratar sobre esses lugares pode não ser uma ação direta de reparação dos sujeitos, mas é um importante reconhecimento sobre a violência da escravidão do ontem nos espaços e nos debates públicos do hoje. E segundo nos deixa alertas sobre os atuais processos similares de redefinições territoriais que tem como consequências o apagamento não somente de lugares e memórias, mas também definem no presente quem é desejável como presença e como símbolo de determinados espaços na cidade.

CE: Quais são os lugares de memória que você já pôde mapear e qual a relevância e história deles?

PA: Mapeei a atual região da Liberdade, onde tínhamos o pelourinho, a forca e os cemitérios da cidade, e também localizei o Sítio do Telégrafo, conhecido como Sítio do Quebra Bunda, na região da Aclimação. Minha pesquisa ainda está em andamento, mas esse espaço próximo ao triângulo do Centro Histórico já me deu bastante subsídio para aprofundar o tema.
Tem um texto chamado ‘A cidade metástases e o urbanismo inflacionário: incursões na entropia paulista’, do Nicolau Sevcenko, que o autor chama a região da Liberdade de “espaço maldito”, porque ali concentrava os instrumentos de tortura. Era o ciclo institucional por onde passava um escravizado em São Paulo. O escravo era tratado como uma pessoa quando cometia um crime, como um excesso a ser descartado quando era um corpo sem espaço para a morte, e como um exemplo punitivo quando era enforcado em praça pública.

O Pelourinho ficava exatamente onde fica a praça João Mendes, então largo de São Gonçalo. No entroncamento do que seria o Caminho de Santo Amaro, ficava o largo do Pelourinho. O pelourinho era ali do lado da João Mendes, no lado da rua da Liberdade. A forca é onde está a praça da Liberdade. Ela foi desativada em meados do XIX. Em frente a forca aconteceu uma morte muito famosa, a do Chaguinhas. Ao pé da forca, que depois foi desativada, as pessoas deixavam flores, algo em sua memória. Ali ficou conhecido como a Santa Cruz dos Enforcados. O cemitério durou até 1885 e foi desativado. Parte do bairro foi construída sobre esse cemitério.

O Sítio do Quebra Bunda estaria no que conhecemos pelo encontro das ruas Apeninos, Pires da Mota, Nilo e Paraíso. O sítio era um prolongamento do pelourinho. Ali era um lugar oficial de punição. Pode-se dizer que era um lugar de disciplinamento de escravos. A pesquisa aponta que ali era um lugar para radicalizar o pelourinho. Me peguei pensando do por que usarem chácaras distantes e escondidas, longe dos olhos, para punir essas pessoas. Acredito que possa ser uma sofisticação do caráter dessa punição. O nome Quebra Bunda era, segundo uma fonte que eu localizei, os escravizados que saiam de lá “descadeirados”.

CE: O que justifica esse centro de punição se concentrar na atual região da Liberdade?

PA: Não posso dizer que era uma tentativa de esconder os horrores. Ao contrário, era um lugar pra ser visível. Pensando na São Paulo da época, era um local elevado, um ponto alto da cidade. Você tinha na mesma espacialidade o controle social da cidade (cadeia + forca + pelourinho) em um lugar para ser visto, porque ali era a presença da autoridade na forma de punidor.

CE: Como você chegou na temática dos lugares de memória da escravidão?

PA: Desde a adolescência me interessei pela memória, o que me levou a estudar história e também trabalhar com acervos. Os direitos humanos sempre foi uma tônica na minha formação, e certa vez a chamada de um curso me chamou muito a atenção. Era um curso sobre “Lugares de Memória das Ditaduras Latino-Americanas”, do Centro de Preservação Casa Yayá (USP), coordenado pelo professor Renato Cymbalista. Fiquei encantada com a possibilidade de pensar a memória a partir dos espaços, e acionar ferramentas de diferentes disciplinas como a arquitetura, o urbanismo, a história, a sociologia para refletir sobre determinada camada de complexidade que uma cidade/lugar pode ter.

Comecei a frequentar o grupo de Pesquisa “Lugares de Memória e Consciência” (CNPQ), e a participar do coletivo SP Safari – hoje chamado de Pisa (Cidade e Pesquisa) -, que trazia as pesquisas sobre lugares de memória dos seus alunos para aulas na rua, nos lugares onde os temas tratados tinham sua materialidade explorada para discutir a população lésbica, gay, bissexual e transgênero, ditadura civil-militar brasileira, a revolução de 1932 em São Paulo, ou a formação da cidade de São Paulo a partir do Pátio do Colégio e suas igrejas.

Fui então convidada a construir uma aula sobre quilombos urbanos, que pretendia discutir a vivência negra na cidade de São Paulo e o termo quilombo em si. Foi um processo altamente desafiador. Porque não me faltariam documentos oficiais para construir meus instrumentos de aula, como acontecia em alguns temas sobre LGBT, por exemplo.

Os negros estiveram em todos os espaços da São Paulo colonial e imperial, entretanto, os lugares onde viveram, existiram e resistiram não existiam. Fruto de demolições e remoções, deslocamentos contínuos, ou pela falta de menção na denominação dos lugares da cidade. Tem a curiosíssima relação no bairro do Bexiga com duas ruas que remetem a abolição da escravatura, como Abolição e Treze de Maio, mas que não possuem nomes de negros libertados da escravidão, ou nem mesmo o nome do rio que foi espaço aquilombado, o Saracura. O cotidiano dessa população não estava preservado em materialidade arquitetônica, mas sim na memória dos moradores, nos rituais festivos e religiosos, nas alcunhas não oficializadas das localidades. Foi então que me despertou o interesse em analisar a escravidão na cidade de São Paulo a partir dos espaços físicos – ou não mais físicos – e os seus processos de transformação desde o século XVI até o século XXI. Amadureci o tema e ao ingressar no mestrado em ciências humanas e sociais, recortei mais ainda o meu projeto para pensar em lugares de punição, tortura, aprisionamento relativos ao período da escravidão e qual a relação desses espaços dentro da cidade de São Paulo do século XXI.

CE: O que te chamou mais atenção até agora?

PA: Existe a tentativa de apagamento desses espaços, o que não significa necessariamente a concretização do apagamento da passagem das pessoas pela cidade. Existe a tentativa de silenciamento, mas não a o total silêncio. A escravidão aconteceu no Brasil, em solo paulistano, e existem registros, relatos, documentos que atestam isso, muito embora na prática, ao se olhar para os espaços hoje, não verifiquemos menção, tentativas de memorização, alguma forma de reconhecimento público e sistemático sobre o período. E dessa forma acredito que ocultamos duplamente tanto a escravidão em si como instituição e período, quanto às pessoas que fizeram parte como perpetradores ou como vítimas desse sistema. Mas ainda assim, seja na transmissão oral da história do lugar – como no caso do enforcamento de Chaguinhas, no bairro da Liberdade -, seja nas letras dos sambas de Geraldo Filme – como quando ele canta a belíssima história de Tebas, o escravizado -, ou em trabalhos acadêmicos anteriores que sistematizaram a documentação, é possível visualizar um ambiente com mais tensões, ambiguidades e vivências complexas do que a tentativa de apagamento pode sugerir. Minha grata surpresa é sempre localizar algo sobre os lugares, ainda que fora das fontes convencionais.

CE: Qual a função social de um lugar de memória trágico, como o pelourinho?

PA: Lugares servem para atestar algo, ou um fato, e ajudam a preservar a memória. Acredito fundamentalmente no papel importante dos lugares de memória na construção de uma sociedade mais justa, onde esses lugares atuem na reelaboração coletiva dos acontecimentos. Como diz Liz Sevcenko, “(…) eles podem ser ferramentas críticas para construir uma cultura dos direitos humanos”. Ao debatermos as memórias, e nesse caso uma memória dolorosa, traumática, temos a chance de trazer a tona e evidenciar as violações cometidas contra sujeitos, contra grupos, contra a humanidade inteira. O Estado Brasileiro nasce com profundo caráter punitivo, e ainda hoje vivemos sob uma ordem social violenta, revestida de controle social, e que afeta direta e cotidianamente a população negra. É necessário enfrentar a escravidão como um crime cometido por séculos contra indivíduos e coletivamente, e então especializar as suas práticas, identificar responsabilidades, para tentar contribuir com mais um olhar sobre a escravidão no Brasil. Destacar os espaços de punição é desejar observar mudanças de um estado brasileiro que tinha a punição e a tortura com um controle social legal, e que hoje idealmente estaria no caminho do reconhecimento da desumanidade imanente a esses tipos de práticas em qualquer tempo histórico: a tragédia da escravidão e seu legado de violência e desigualdade não prescrevem. Destacar espaços da escravidão é reafirmar que ela aconteceu e quais as suas dimensões, práticas e envolvidos.

Patrícia Oliveira, bacharel em biblioteconomia, licenciada em história, mestranda em Ciências humanas e sociais. Integra o grupo lugares de memória e consciência (FAU-USP), Coletivo Pisa – Pesquisa e Cidade.

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