Educação

“Escutar a criança é fundamental”

Psicóloga e educadora, Milena Aragão fala sobre a violência contra a criança em casa e na sala de aula

Milena Aragão|Projeto de Lei da Câmara 58/2014|Milena Aragão|Milena Aragão
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Aprovado em 2014, a “lei Menino Bernardo”, tem seu teor ainda pouco conhecido da população em geral. Parte da confusão deve-se ao apelido dado à lei durante a tramitação no Congresso, de “Lei da Palmada”. A legislação não se circunscrevia apenas à violência e aos castigos físicos aplicados em crianças.

“A lei veio para contribuir com uma mudança de olhar e incide sobre todo tipo de violência, não apenas física”, explica a psicóloga Milena Aragão, de 38 anos.

Carioca, Milena cursou Psicologia na Universidade Federal de Santa Catarina, cursou mestrado em Educação pela Universidade de Caxias do Sul e concluiu o doutorado pela Universidade Federal de Sergipe.

Durante sua trajetória, pesquisou a violência contra a criança e, infelizmente, tem más notícias: os pais ainda batem muito (mas nem sempre tomam conhecimento da violência) e os professores ainda não se apropriaram de outras formas de educar, sem gritos e agressões.

Milena Aragão A psicóloga Milena Aragão é doutora pela Universidade Federal de Sergipe

Carta Educação: O que diz a lei Menino Bernardo?

Milena Aragão: A lei é fruto de uma discussão de bastante tempo. Em 2010, veio outro projeto, determinando que as crianças e jovens não fossem educados e cuidados com castigo. Ele foi aprovado em junho de 2014 e mudou o Estatuto da Criança e do Adolescente. Ele foi apelidado de Lei da Palmada, apelido que considero errado, pois não se trata da proibição da palmada pura e simplesmente – a lei veio para contribuir com uma mudança de olhar e incide sobre todo tipo de violência, não apenas física.

CE: O que dizia a lei antes?

MA: A primeira vez que os castigos apareceram na legislação foi em 1827. A ideia era de que os castigos fossem feitos pelo método lancasteriano. Também conhecido como ensino mútuo, consistia em dispor em sala de aula um grupo de até cem alunos, aos cuidados de um professor e de monitores auxiliares, que eram os alunos mais adiantados. Joseph Lancaster, criador do método, dizia que os castigos não deviam imprimir dor no corpo da criança. Ele não acreditava em castigo físico, mas sim, em castigo moral, ou seja, causar vergonha. Então, podia ser um chapéu de burro. Durante todo o século XIX houve um movimento forte em legislações provinciais para tentar coibir o castigo físico e enaltecer os castigos morais, mas a prática da palmatória ainda persistiu.

No século passado, o movimento Escola Nova trouxe a ideia de não castigar. Esse novo modelo, a partir dos anos 1920 e 1930, assumia que o professor deveria dar uma aula interessante, capaz de atrair a turma toda. Isso passou a mensagem de que, se o professor castigasse, não estaria fazendo bem seu trabalho. A partir daí, o castigo na escola continuou, mas escondido. Em vez da palmatória, era régua, puxão de cabelo, muito grito. Os professores usavam esses artifícios porque também não sabiam o que fazer.

CE: Essas mudanças valeram para os pais?

MA: Só para os professores. Tanto que, como documentos históricos mostram, os professores que não podiam bater reclamavam do comportamento das crianças para a família. Usavam-se os responsáveis como mais uma forma de castigo, do tipo “se não ficar quieto falo para os seus pais”. Há relatos até de familiares que batiam na criança dentro da escola mesmo, na frente dos professores.

CE: Quando foi que os hábitos começaram a mudar dentro de casa?

MA: A mudança efetiva no cotidiano ocorreu após o ECA, em 1990. Tenho relatos, porém, de que ainda assim muitas práticas continuaram. Há relatos de uso da palmatória até os anos 1990. A discussão sobre a infância e a juventude ganhou relevância nos últimos anos, mudando o olhar, reforçando o discurso de respeito, mas não foi falado do castigo. Além disso, os professores entenderam que não podiam humilhar, mas sentiram falta de uma discussão maior sobre o que fazer. Foi aí que a Lei Menino Bernardo entrou. Ela veio para dizer que a criança é um sujeito de direitos que não deve receber castigo físico ou humilhante. A partir disso, passou-se a discutir mais como conquistar o aluno e o Estado passou a precisar intervir até mesmo em casos de castigos das famílias.

CE: Há números de quantos pais batem em seus filhos?

MA: O meu doutorado foi na perspectiva qualitativa. Como estatística, temos o Mapa da Violência e os dados divulgados pela Secretaria de Direitos Humanos: mais de 70% das denúncias do disque 100 em 2014 eram de violências contra a criança e o adolescente, 130 mil casos. A sociedade é violenta com eles.

CE: Os pais percebem quando usam violência física ou moral?

MA: Geralmente, não. Já atendi em consultório criança com marca de fivela e a mãe afirmando que não foi violenta. Na minha experiência como psicóloga escolar, percebi que muitos professores diziam que não castigavam, mas apontavam o outro colega que castigava, e assim por diante. Uma pesquisa recente nos Estados Unidos com 33 famílias mostrou que os pais batem muito mais do que percebem. Foi feita gravação na casa de pais que diziam que não batiam. Quando eles assistiam às agressões e humilhações feitas por eles com os filhos, ficavam perplexos, simplesmente não se lembravam. Em média, as crianças apanhavam ou sofriam humilhações 18 vezes por semana. É preciso haver uma desnaturalização dos castigos. Hoje ainda é tão natural que os agressores não percebem.

CE: Como um adulto deve agir, em vez de ser agressivo?

MA: A primeira indicação é o autoconhecimento. Precisamos nos perguntar: o que meu filho ou meu aluno faz que me tira do sério? Geralmente, a pessoa bate ou humilha quando já está sem paciência. Outra necessidade é entender que sente e pensa diferente do adulto, é preciso entender sobre desenvolvimento (infantil). É inadmissível um profissional da Educação Infantil ou dos primeiros anos do ciclo Fundamental não saiba o momento em que a criança está. Às vezes, ela demonstra agressividade como forma de manifestar um problema. Esse é o primeiro passo que todos nós temos de dar.

Depois, existe o caminho da disciplina positiva. Em vez de partir do negativo, é ver o que a criança faz de bom. Por exemplo, se uma criança está agressiva, a primeira pergunta: “O que ela tem de bom?” Muitas vezes as professoras não sabem responder, então, peço para voltar e observar. Tem de ajudar a criança a nomear os sentimentos e pensar em consequências.

CE: Existem pesquisas que comprovam a efetividade da disciplina positiva?

MA: Existem muitos livros. Ainda estão sendo feitas pesquisas a respeito. É uma forma de olhar mais recente. A minha pesquisa mostra o resultado dentro da escola. A partir de projetos de amor, amizade, expressão do sentimento, houve efeitos muito positivos, simplesmente não tivemos mais casos de crianças agressivas. Uma vez um menino de 4 anos jogou uma pedra no coleguinha. Ele ficou marcado como psicopata mirim e todo mundo falava com ele a partir desse rótulo. Aí começamos a trabalhar a atenção positiva. Fazíamos pedágio de beijo e abraço e elogiávamos os avanços da criança. Ele começou a buscar nossa atenção por esse lado positivo. Em um mês, ele já não apresentava nenhum traço violento.

CE: Como um adulto sabe se está humilhando?

MA: Pode fazer a seguinte pergunta: essa forma com que eu falei com meu filho eu falaria com qualquer outra pessoa? Assim como não tenho direito com outro adulto, também não tenho com uma criança.

CE: É possível colocar limites sem nunca ser agressivo?

MA: Sim, a criança precisa de limite e de afeto. O adulto é que precisa conhecer seu limite, em vez de perder a paciência. Cada um precisa olhar para si e entender: o que me incomoda? E entender a criança também. Escolhemos ser pais e professores, então, precisamos dar atenção especial para a criança e para a gente também. Ou seja, tentar entender o contexto, explicar e mostrar as consequências. Por exemplo: a criança derramou algo no chão e é mandada para o quarto. Isso não é consequência, ela tem de entender o que aconteceu e ajudar a limpar. Na escola é mais fácil ainda: tem de construir regra juntamente com a criança para ela aprender respeito, empatia e importância do coletivo.

CE: Como começar a mudança?

MA: Escutar é fundamental. Não se deve botar no canto para pensar ou ela vai associar que pensar é castigo. Vou dar um exemplo: certa vez um aluno cuspiu na minha cabeça. Fui para um lugar reservado e, olhando nos olhos dele, abaixada, expliquei que não gostei. Ele, com 4 anos, conseguiu me explicar que estava defendendo o irmão porque achou que eu estava tirando o brinquedo dele. O menino ainda não me conhecia e reagiu dessa forma. Assim, nos entendemos e esse tipo de comportamento não ocorreu mais. Ele não precisava de castigo, ele tinha de ouvir e eu também. Falta essa conversa. Às vezes não dá na hora, tem de fazer uma atividade para relaxar, depois voltar e tentar novamente. Posso dar um exemplo de projeto?

CE: Sim, por favor!

MA: Gosto muito de um projeto, que eu chamei de “Sentimentos”. O objetivo era ajudar a identificar as emoções e aprender como lidar com elas. Em cada sala de aula é montado o “cantinho da calma”, espaço construído em parceria com os alunos. A professora sugere e explica o que é cada sentimento e os alunos também podem acrescentar outros. As crianças iam para lá quando achavam difícil lidar com alguma situação. Lá havia bonecas, ursinhos, joão-bobo e um dado em que cada face representava um sentimento: carinha triste, feliz, e assim por diante.

Então, os alunos melhoravam ou se interessavam novamente pela aula e voltavam a participar dela. Também montamos a caixa de sentimentos, em que elas desenhavam o sentimento e como se sentiam. No começo do dia, usávamos um “emociômetro”: todos diziam como estavam se sentindo. Depois, cada um via a carinha do colega e conversava, dava um abraço e já ficava mais feliz. A irritação que o aluno trazia para a escola já era dissipada. A professora também podia mudar a carinha para triste e os alunos imediatamente paravam com a ação que a estava deixando assim. Isso criava um eixo comum de respeito e acolhimento.

CE: O professor se ressente de os pais não darem educação em casa. Como vê a questão?

MA: Realmente, é uma reclamação comum. Escuto muito. No entanto, essa ideia de separação entre ensino e educação está errada. As duas coisas ocorrem nos dois lugares. Entendo o que os professores querem dizer, mas é impossível quando não existe o outro lado? Não. Vamos abandonar essa criança? Não. Nós, professores, estudamos para entender o desenvolvimento infantil, os pais não estudaram. Existem muitas técnicas para que a criança expresse seus sentimentos e consiga ficar mais calma dentro da escola. Já vi várias vezes os pais perguntarem o porquê de as crianças respeitarem os adultos na escola, mas não em casa. Então, em vez de ficar reclamando o tempo todo, eu, o educador, tenho de procurar estratégias dentro do meu trabalho.

CE: Como unir forças com os pais?

MA: Posso dar exemplo das escolas que trabalhei, mas sei de outras unidades de ensino que não havia nem reunião de pais. Acho que a melhor estratégia é ter reuniões de pais por criança. Quando a criança fazia algo que eu não dava conta na escola, chamava o responsável, mas começava elogiando o filho, dizia um monte de ações positivas, e me colocava à disposição. Depois, relatava o episódio e já dava algumas técnicas possíveis. No momento em que a criança melhorava, eu chamava os pais de novo. Às vezes eles se espantavam, mas eu queria que eles tivessem essa experiência. O ruim é quando polariza e vem a pergunta: “De quem é o problema?” Não é um problema, é uma criança.

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