Educação

As crianças do candomblé e a discriminação

Stela Caputo fala sobre o preconceito sofrido por crianças do candomblé no espaço escolar e nas ruas

Apoie Siga-nos no

Em 1992, Stela Guedes Caputo, então repórter do jornal O Dia, fazia uma pauta sobre o candomblé na Baixada Fluminense. Na primeira casa que entrou deparou-se com um menino de 4 anos tocando atabaque. Stela resolveu então escrever sobre como as crianças vivenciam a religião afro-brasileira. Foi o próprio menino, o primeiro a relatar a discriminação sofrida pelas crianças do axé.

Na escola, contou, a professora o chamou de “filho do Diabo”. “As duas coisas ficaram na minha cabeça: as aprendizagens em terreiros e a discriminação das crianças”, conta Stela, professora do Programa de Pós Graduação em Educação da Uerj e autora de Educação nos Terreiros – E como a escola se relaciona com as crianças do candomblé.

O assunto ganha mais relevância diante do caso de agressão sofrido por Kayllane Coelho, de 11 anos, apedrejada no Rio de Janeiro ao voltar de uma festa em um terreiro, vestida de branco, no último dia 14 de junho de 2015. Leia:

Carta Educação: Como pode ser explicado o caso da menina Kayllane Coelho, apedrejada por estar de branco, com traje de terreiro, ao passar pela rua?
Stela Guedes Caputo: A garota Kayllane Coelho, de 11 anos, foi apedrejada no bairro de Vila da Penha, no Rio, na noite de 14 de junho, ao voltar de um terreiro vestindo branco. Há mais de 20 anos denuncio a perseguição e discriminação de crianças de candomblé. Essa discriminação começa com insultos raciais e religiosos e, de forma trágica, chega a uma pedrada em plena rua. É preciso perguntar por que a pedra foi lançada? Ela não foi lançada apenas por aqueles dois meninos na rua nem foi um caso isolado. A discriminação religiosa e racial vem sendo construída há séculos em alianças com setores conservadores de várias religiões, que também estão nas escolas. Ou seja, a discriminação é ensinada.

Conversei com Kayllane e ela não narra discriminação na escola, mas nas ruas da cidade, nos ônibus. Evidente que a situação pode piorar se os movimentos sociais não unificarem pautas. A pauta dos movimentos LGBT precisa incluir a luta pela educação laica, porque a religião na escola, em uma aliança entre setores católicos obscurantistas e pentencostais retrógrados, ao contrário do que diz, ensina o ódio às religiões afro-brasileiras e às orientações sexuais não normatizadas, essencializadas, biologizadas. As faculdades de Educação precisam priorizar essa discussão. Os setores progressistas católicos, evangélicos e de outras religiões, juntamente com candomblecistas e umbandistas necessitam dialogar, mas esse diálogo precisa ter uma pauta concreta de ações imediatas.

Os terreiros precisam ser mais unidos e discutir mais a questão. Não foi sem união e sem luta que o candomblé chegou aos dias de hoje e, se quiser sobreviver, muita coisa tem de mudar. Ou seja, deixar de lado coisas menores que dividem as casas e olhar para o verdadeiro inimigo, que são os fanáticos, os fascistas e os obscurantistas. Queremos o diálogo, mas quem come amalá também sabe brigar. Então vamos brigar, mas não entre nós.

CE: Como a senhora começou a pesquisar esse tema?
SGC: Em 1992, era repórter do jornal O Dia, no Rio, e tinha uma pauta para verificar como andava o candomblé na Baixada Fluminense. Na primeira casa que entrei, o terreiro de Mãe Palmira de Iansã, em Mesquita, vi um menino chamado Ricardo, de 4 anos, tocando atabaque. A pauta mudou e passou a ser como as crianças vivenciam o candomblé, como aprendem e ensinam em terreiros, como recebem cargos, se preparam para receber os Orixás etc. Mas também ali, já em 1992, o próprio Ricardo me disse que na escola foi chamado pela professora de “filho do Diabo”.

Foi o primeiro relato de discriminação que ouvi. As duas coisas ficaram na minha cabeça: a aprendizagem em terreiros e a discriminação das crianças. A matéria foi publicada e continuei voltando a esse mesmo terreiro, onde construímos uma relação de afeto e confiança por 20 anos. Fiz mestrado, doutorado, pós-doutorado estudando esses dois aspectos e, em 2012, publiquei o livro Educação nos Terreiros – E como a escola se relaciona com crianças de candomblé.

No candomblé me importa observar como crianças e adolescentes elaboram sentidos, como usam esses sentidos no mundo dentro e fora dos terreiros. O terreiro inverte a lógica adultocêntrica que organiza a sociedade e na qual a criança não sabe nada, o adulto sabe tudo e é o adulto quem ensina. A criança de candomblé ensina e compartilha seus sentidos e esses sentidos são os protagonistas das minhas pesquisas.

CE: A senhora afirmou que a escola é o espaço onde as crianças de candomblé mais se sentem discriminadas. De que maneira isso apareceu nos relatos ao longo de sua pesquisa?
SGC: Como disse, as crianças e adolescentes são os protagonistas das pesquisas que desenvolvo. Quando comecei, interessavam-me as produções de sentidos das crianças de candomblé e só isso me bastava. Foram as crianças que apontaram todas as direções da pesquisa. Joyce dos Santos, de 13 anos, por exemplo, disse que não entrava na escola com suas contas de candomblé porque se envergonhava e porque sofria discriminação. Para amenizar o sofrimento, dizia que era católica. Alguns anos depois, a mesma Joyce me disse que sabia que a discriminação sofrida não era apenas religiosa, mas racial. “Me apontavam na rua e diziam, isso é coisa de preto!” Seu irmão Jailson, de 19 anos, me disse não sofrer discriminação “a não ser aquele preconceito normal”. Tauana dos Santos, a menina da capa do meu livro, sofreu muita discriminação também na infância e na adolescência, mas hoje é uma militante dos movimentos contra o racismo. Eu ouvi esses depoimentos, não podia ficar alheia a isso. Por isso também precisei sair dos terreiros e fazer a ponte com a escola e buscar entender essa tensa relação.

CE: Por que a escola, em particular, é um ambiente tão discriminador com essas crianças?
SGC: Por várias questões. Paulo Leminski diz assim: “O Brasil, qualquer transeunte sabe, foi descoberto por Cabral e fundado pela violência. Violência física e espiritual do branco adventício e invasor sobre o índio e o negro sequestrado na África e escravizado. Conquista e catequese. Ou catequese e conquista”. Isso marcou nossa escolarização pública. Já que, em 1549, os jesuítas chegam ao País com o seu ABC e a benzer. Conversão, sujeição e redução são palavras usadas para a catequese e para a “Educação”, já que foram os jesuítas que fundaram o primeiro colégio no Brasil, sendo responsáveis pela nossa Educação por dois séculos. Obviamente, muita coisa mudou de lá para cá, mas a lógica de conversão, de redução e sujeição das diferenças à mesmidade ainda hegemoniza a Educação pública.

CE: Esse comportamento é específico com relação às religiões de matriz afro-brasileira ou ele aparece com relação a outras? Por quê?

SGC: A lógica da redução das diferenças à mesmidade é muito mais ampla e tenta alcançar tudo o que não é considerado “normal”, “igual”. E a pergunta fundamental é “normal” e “igual” em relação a quê ou a quem? À lógica de um sistema cujo poder é branco, masculino, heterosexual, cristão e, cada vez mais, obscurantista. Qualquer tentativa de afirmação daqueles que fogem a essa lógica é considerada uma disputa de poder, portanto, uma ruptura que deve ser discriminada, perseguida, submetida, reduzida e, quando não, eliminada.

A mesma lógica que faz com que o Brasil seja campeão de crimes contra travestis e transexuais em todo o mundo e a mesma lógica racista que faz com que a vida de um branco tenha mais valor do que a de um negro em nosso país. A discriminação religiosa faz parte dessa normatização operada pela sociedade como um todo e pela escola particularmente. Em vez de problematizar essa normatização, a escola a reproduz. E, sim, no que se refere às religiões, as afro-brasileiras são as mais discriminadas porque representam que a redução da catequese falhou. Porque continuamos frequentando rituais onde deuses dançam e onde cânticos, tambores e o axé levam ao transe. E porque, sobretudo, como me disse a menina Joyce, tudo isso é considerado “coisa de preto”, atribuindo a essa fala um sentido pejorativo. A discriminação religiosa do candomblé é discriminação racial, é racismo.

CE: Que tipo de consequências um ambiente escolar discriminador dessas religiões pode trazer para seus alunos? E para a sociedade em geral?
SGC: As consequências são em vários níveis e muito graves. A primeira são os golpes cotidianos na autoestima dos alunos e alunas candomblecistas. São crianças e jovens que amam a sua religião, amam os terreiros, os Orixás. Possuem cargos e funções importantíssimos nos terreiros e são tratadas com imenso amor, respeito e reverência. E na escola? São silenciados, humilhados, discriminados, ridicularizados. Elas ficam perdidas, divididas, envergonhadas. Inventam formas de menos sofrer, dizem que pertencem a outra religião, sentem-se menores, incapazes, inferiores. Essas crianças possuem um rico conhecimento sobre narrativas africanas, ervas, danças, cantigas, línguas e, por incrível que pareça, passam a acreditar que sabem menos. De que modo isso pode ser bom para a sociedade? A escola deveria contribuir para diminuir a discriminação, e não o contrário.

CE: A Lei nº 10.639 estabelece a obrigatoriedade do ensino de História e Cultura Afro-Brasileira. Após uma década, a lei trouxe mudanças para a escola?
SGC: É preciso compreender essa questão historicamente e sem retirá-la do quadro de tensões e lutas nas quais ela nasce e se movimenta. Apesar de toda militância dos movimentos sociais, em especial dos movimentos negros, tanto a Constituição Federal quanto a Lei de Diretrizes e Bases (LDB) de 1996 não incorporam as reivindicações que buscavam diminuir as desigualdades raciais brasileiras, particularmente, na Educação.

A lei é uma conquista que altera o artigo 26 da LDB. Agora, como tudo no Brasil, entre a lei e sua efetivação prática vai uma distância muito grande. As questões que dificultam sua implementação são as tensões raciais neste país. Questiona-se a sua necessidade, e já nesse questionamento podemos ver o quanto o conhecimento do continente africano é desprezado na nossa educação. Esse desprezo é puro racismo. Também é o racismo aliado a um forte e crescente obscurantismo que dificulta, e até mesmo impede, que professores consigam falar, por exemplo, da história de qualquer país africano. Os jornais e as redes sociais constantemente divulgam casos de alunos, alunas e pais que se recusam a fazer pesquisa sobre esses países, alegando que “isso é coisa do Diabo”.

Muitos profissionais da Educação conseguem, mas isso não pode ser um resultado individual, precisa ser o que é: política pública. O MEC precisa tomar para si não só a tarefa de garantir, de fato, o respeito à lei, mas também combater o racismo que impede a sua implementação.

CE: De que maneira a escola, e o professor, em particular, pode atuar para reduzir a discriminação religiosa e o preconceito racial atrelado, no caso das religiões afro-brasileiras?
SGC: Precisamos, todos, reconhecer que a escola é o lugar da diferença e, portanto, do conflito. O papel do conhecimento é questionar, é duvidar, porque é por meio das dúvidas que avançamos, recuamos, tornamos a avançar. A escola não pode esquecer que o seu papel é questionar. É por isso que não podemos concordar com uma disciplina de Ensino Religioso, porque religião é dogma, é fé, e cada aluno ou aluna, professor e professora possui sua fé ou não possui nenhuma fé.

Em tese, no Brasil, Estado e religião estão separados, mas, contraditoriamente, na prática, a escola continua catequizando e o principal alvo da conversão é o aluno ou aluna de candomblé e umbanda. Nesse preconceitro religioso não pode estar subsumido o racismo, pois é ele que opera o preconceito religioso. As religiões afro-brasileiras não se dobraram, não desapareceram. Não acho que a Educação resolva problemas da ordem de um projeto político para o Brasil. Mas a Educação tem o dever de, todo dia, lembrar que existe para combater o racismo.

É mais importante combater o racismo do que ensinar uma equação ou fórmula. Quero dizer com isso que, primeiro, o professor não pode fingir que o conflito racial não existe. Deve discuti-lo e enfrentá-lo no cotidiano escolar. Segundo, todo conteúdo de toda disciplina pode e deve ser usado para uma Educação pautada nos Direitos Humanos e no combate ao racismo.

Saiba Mais
Educação nos Terreiros – E como a escola se relaciona com crianças de candomblé, de Stela Guedes Caputo, Editora Pallas, 2012.

ENTENDA MAIS SOBRE: , , , ,

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo

Um minuto, por favor…

O bolsonarismo perdeu a batalha das urnas, mas não está morto.

Diante de um país tão dividido e arrasado, é preciso centrar esforços em uma reconstrução.

Seu apoio, leitor, será ainda mais fundamental.

Se você valoriza o bom jornalismo, ajude CartaCapital a seguir lutando por um novo Brasil.

Assine a edição semanal da revista;

Ou contribua, com o quanto puder.

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo