Disciplinas

A terra inteira 
como romance

Viaje pelo mundo nas palavras do escritor francês Júlio Verne 
e trilhe o caminho da fantasia para chegar à ciência

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Uma das grandes novidades do século XIX foi a descoberta da eletricidade. A nova genialidade científica ligava velozmente diversas partes do mundo. A Europa e a América, por exemplo, passaram a se comunicar por cabos submarinos transatlânticos, que podiam funcionar transmitindo mensagens em uma extensão de até 4 mil quilômetros.

Graças a outras duas invenções do século, a navegação a vapor e as estradas de ferro, os indivíduos podiam seguir as rotas por onde circulavam as ideias e viajar velozmente por terra e mar. De repente, o mundo ficava pequeno e todo conectado. Não tardou para que os progressos da ciência e das invenções técnicas fossem transformados em temas de um novo gênero de literatura para a juventude, a ficção científica voltada para a educação e o entretenimento.

O escritor francês Júlio Verne foi uns dos principais intérpretes dos novos tempos. Em 1863, com o romance intitulado Cinco Semanas em um Balão, que conta a história da travessia da África feita pelo dr. Fergusson a bordo de um dirigível, Verne e seu editor, Pierre-Jules Hetzel, dão início à publicação das famosas Viagens Extraordinárias por Mundos Conhecidos e Desconhecidos. As Viagens formavam uma série de 64 livros de aventura, parte da Biblioteca de Educação e Recreação.

O escritor e o editor nutriam em comum o sonho de oferecer aos jovens leitores a terra inteira como um romance, situando cada narrativa em um país ou ambiente, no fundo do mar e em ilhas desertas, na Lua, nas florestas, nas montanhas e nos vulcões, nas cidades e nos polos. Para que o projeto surtisse o efeito desejado, os dois trabalharam arduamente. Verne buscava inspiração em livros e documentos das sociedades científicas, como a Sociedade Geográfica de Paris.

O escritor lia muito sobre a geografia, a história e os costumes dos povos que habitavam os cinco continentes, escrevia manhãs inteiras e aprontava dois livros por ano, até as vésperas de sua morte, em 1905. Hetzel, que também escrevia para crianças sob o pseudônimo de P.J. Stahl, reuniu uma equipe de cientistas para auxiliar Verne, ao mesmo tempo que editava o Magasin d’Éducation et de Récréation, uma revista quinzenal ilustrada. O Magasin destinava-se à leitura familiar e publicava as histórias de Verne em capítulos antes de serem editadas no formato de livro. Foi o Magasin, adotado nas escolas francesas, já gratuitas e obrigatórias para todos, o responsável pela entrada das Viagens Extraordinárias na educação. Na companhia de Verne, professores e alunos davam voltas ao planeta sem sair da sala de aula, descobriam por meio da leitura mundos conhecidos e desconhecidos.

O primeiro livro da série Viagens Extraordinárias, Cinco Semanas em um balão, foi um sucesso de vendas. Depois, vieram os romances até hoje apreciados, Viagem ao Centro da Terra (1864), Viagens e Aventuras do Capitão Hatteras (1864-1865), Da Terra à Lua  (1865), Os Filhos do Capitão Grant (1865-1867), Vinte Mil Léguas Submarinas (1869-1870) e Ilha Misteriosa (1874-1875), entre outros.

Um autor viajante
Júlio Verne nasceu na Ilha Feydeau, em Nantes, uma cidade da região da Bretanha, no dia 8 de fevereiro de 1828. Seu pai, Pierre Verne era advogado, e Sophie Allotte de la Füye, sua mãe, descendente de uma nobre família. Na infância, estudou na escola particular da professora Sambain e, adolescente, na escola de Saint-Stanislas, para, enfim, terminar os estudos secundários no seminário de Saint-Donatien.

A família Verne passava as férias de verão na casa de campo de Chantenay, situada no lado direito do Rio Loire. O desejo de navegar devorava o pequeno Júlio. Aos 12 anos, ele ainda não conhecia o mar, mas compreendia as manobras e os perigos da navegação marítima com a leitura dos livros de Fenimore Cooper e do clássico Robinson Crusoé, do escritor inglês Daniel Defoe. Adulto e famoso, comprou o iate Saint-Michel, navegou pelo Mediterrâneo, atravessou o Atlântico, conheceu os Estados Unidos, passou oito dias em Nova York, viu o Hudson e contemplou as Cataratas do Niágara, sempre tomando anotações em seu diário de bordo. Numa dessas viagens, Verne foi a Lisboa fazer uma visita ao editor português David Corazzi, que o publicava na Biblioteca das Viagens Maravilhosas aos Mundos Conhecidos e Desconhecidos e exportava seus romances para as livrarias brasileiras.

Júlio Verne iniciou a faculdade de Direito, em Paris, a fim de seguir os passos do pai, mas a vida boêmia nos salões literários, o encontro com o escritor Alexandre Dumas, que muito o influenciou, o posterior envolvimento com o teatro e, no outono de 1862, o início da parceria com o editor Pierre-Jules Hetzel, orientaram seu destino para a literatura. Por esse tempo, Verne desposou Honorine, uma jovem viúva, mãe de dois filhos, aos quais se juntou Michel, fruto do casal. Em 1866, a família decide morar em Crotoy, na Picardia, e, em 1871, se instala definitivamente na pacata cidade de Amiens. Na vida provinciana, Verne criava suas aventuras e heróis com tranquilidade, concedia entrevistas a jornalistas americanos e europeus que o visitavam com frequência, enviava a Hetzel as provas de seus romances com a pontualidade exigida no contrato de edição, viajava quando sentia vontade.

O escritor fundou uma verdadeira enciclopédia do universo. Embora escrita há mais de cem anos, sua obra, uma das mais traduzidas e adaptadas no mundo, atravessa gerações de leitores. Publicada em diversos países e por variados suportes, impressos e digitais – livros, filmes e quadrinhos -, além de encenada em espetáculos de teatro, ainda é capaz de despertar o interesse e aguçar a curiosidade da juventude. Quem não admira a coragem do capitão Nemo a bordo do submarino Nautilus?

Tão logo eram publicados na França, os romances de Verne entravam para as coleções juvenis organizadas pelas editoras portuguesas e franco-brasileiras. No século XIX, destaca-se a Biblioteca de Viagens, do livreiro Baptiste Louis Garnier, comerciante francês que migrara para o Rio de Janeiro em 1844 e especializara-se no negócio do livro importado e da tradução de obras clássicas francesas.

Em 1876, Garnier publica A Ilha Misteriosa – O segredo da ilha, uma tradução de Fantasio, pseudônimo bastante usado pelos poetas. No catálogo da editora, havia ainda 16 títulos de Verne: Os Filhos do Capitão Grant, Ao Redor da Lua, Da Terra à Lua, Cinco Semanas em um Balão, Viagem ao Centro da Terra, Viagens e Aventuras do Capitão Hatteras, entre outros. Em 1883, encontramos a tradução de J. M. Vaz Pinto Coelho do livro Os Viajantes do Século XIX. No início do século XX, a livraria carioca Francisco Alves forma, com a tradução brasileira da obra de Júlio Verne, sua coleção Viagens Maravilhosas.  O mesmo aconteceu com a Editora Melhoramentos.

Nos anos 1970, a gráfica Tecnoprint e as Edições de Ouro, antecessoras do Grupo Ediouro, passaram a publicar em pequenos formatos os romances de Verne nas coleções Calouro e Elefante, com traduções e adaptações de Marques Rebelo, Clarice Lispector e Carlos Heitor Cony. Hoje, são primorosas as traduções e adaptações de A Volta ao Mundo em 80 Dias, feita por Walcyr Carrasco, para a editora Moderna, e a tradução das Vinte Mil Léguas Submarinas, de Hildegard Feist, para a Companhia das Letrinhas.  O texto de A Ilha Misteriosa, adaptado por Clarice Lispector, hoje, parte da coleção Jovens Leitores da Editora Rocco, também é uma boa pedida.

Em 1907, dois anos após a morte de Verne, o poeta Olavo Bilac escreveu uma crônica comparando a sua leitura da Viagem à Roda da Lua à de um jovem leitor que encontrara em uma sala da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. O mesmo passar sôfrego das páginas e a mesma tensão no rosto ante o desenlace final. No colégio do padre Belmonte, recorda o poeta, os livros de Júlio Verne passavam sorrateiramente de mãos em mãos, até serem devorados pelos alunos nos intervalos das aulas.  Os rigores da educação imperial, marcada pelos castigos físicos e a vigilância ininterrupta do bedel, levavam os alunos a leituras de evasão. Os jovens partiam em viagens de descobertas inesquecíveis da natureza e da ciência, na companhia de Júlio Verne: “Quase morri de frio no polo, de fome numa ilha deserta, de sede numa árida solidão do centro da África, de falta de ar no fundo da terra, de deslumbramento na proximidade da Lua!”

No passado, os romances de Verne não eram adotados nos currículos de Geografia ou História brasileiros. Os professores mostravam-se desconfiados e reticentes quando o assunto era a ficção na sala de aula. Viagens maravilhosas ao centro da terra, deslocamentos pelos ares em balões e aventuras marítimas não tinham a mesma credibilidade que as lições dos livros.

Entretanto, ficou bem marcada na lembrança do escritor Monteiro Lobato a importância da obra de Júlio Verne na formação escolar das crianças brasileiras. Foram as viagens sul-americanas que o levaram à leitura do naturalista Alexander von Humboldt e o estimularam à consulta dos atlas e ao estudo da Geografia. De outro modo, não havia como decorar nomes de rios, cidades, golfos e mares. Olavo Bilac e Monteiro Lobato trilharam o caminho da fantasia para chegar à ciência.

Hoje, os romances de Júlio Verne não apenas fascinam pelas antecipações científicas e as visões do futuro que anunciavam aos leitores do passado. As viagens extraordinárias continuam atuais por proporcionarem o encontro com as alteridades, o conhecimento da diversidade cultural dos tipos humanos, caracterizados como naturais em vez de simplesmente formas selvagens de vida, a exemplo das tribos indígenas. Júlio Verne não deixou de rechear suas aventuras com episódios históricos, como as lutas de independência e os movimentos de libertação das colônias europeias no século XIX, e reflexões críticas sobre a herança perversa da escravidão negra nas Américas do Norte e do Sul. Júlio Verne não esqueceu o Brasil. Uma das viagens da série, o romance A Jangada. Vinte Mil Léguas pelo Rio Amazonas, se passa entre Iquitos, no Peru, e Belém do Pará, no norte do Brasil.

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