Carta Explica

Entenda a reforma trabalhista

O Carta Educação selecionou algumas dúvidas de seus leitores sobre a reforma trabalhista e as encaminhou a uma juíza do trabalho. Confira!

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Com a colaboração de Beatriz Drague Ramos

Os trabalhadores serão prejudicados? Terão assegurados direitos como FGTS, 13º salário e seguro desemprego? Poderão ser demitidos e recontratados para ganhar menos?

Essas são só algumas perguntas que ainda pairam sobre a reforma trabalhista. A proposta, que se encontra sob análise do Senado, prevê a alteração de mais de 100 artigos da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT).

Na tentativa de esclarecer as principais dúvidas de seus leitores, o Carta Educação selecionou algumas questões recebidas e as encaminhou para a juíza do trabalho Valdete Souto Severo, convidada do Carta Explica desta semana. Confira!

1. A reforma altera algum artigo da Constituição trabalhista?

A reforma altera a CLT não a Constituição, embora exista uma PEC em tramitação (PEC 300/2016) que prevê a alteração do artigo sétimo da Constituição Federal. O problema é que as alterações que essa reforma trabalhista propõe para a CLT vão acabar tornando letra morta os artigos da Constituição. Não altera diretamente, mas indiretamente sim.

2. A reforma trabalhista tira direitos dos trabalhadores ou os prejudica de alguma forma?

De várias formas. Ela mexe em mais de 200 artigos da CLT e retira vários direitos. Permite, por exemplo, a supressão de intervalo de descanso, o trabalho intermitente – que é aquele em que o trabalhador só recebe pelas horas que efetivamente trabalhar, sem remuneração de descanso e férias. É quase a institucionalização do bico, um trabalho bem precarizado.

Além disso, permite a terceirização em todas as atividades da empresa e que  gestantes trabalhem em ambientes insalubres, que trazem danos à saúde. Do início ao fim, todos os artigos prejudicam e tiram direitos dos trabalhadores.

3. No caso do trabalho intermitente, as horas trabalhadas seriam pré-combinadas ou alteradas de acordo com os interesses do empregador?

Elas podem ser alteradas pelo empregador. A previsão da lei é a seguinte: o trabalhador é contratado para trabalhar com alternância imprevista, de dias e horários. Por exemplo, cinco horas em uma semana, dez na outra, e essa decisão fica a cargo do empregador. Isso impacta diretamente em sua remuneração, que será calculada com base nesse montante de horas trabalhadas. Ou seja, para ter uma remuneração decente, ou mesmo para planejar a vida, o trabalhador terá que buscar por mais empregos.

4. O que significa o negociado prevalecer sobre o legislado? Quais os impactos para o trabalhador?

Significa a possibilidade de os trabalhadores negociarem condições de trabalho piores do que as que estão previstas na lei, abrirem mão de direitos através de acordos ou convenções coletivas. A reforma também prevê a possibilidade de empresas com mais de 200 empregados nomearem representantes não ligados ao sindicato para também realizar esse tipo de negociação com os trabalhadores. Trata-se de algo inconstitucional

5. Essa negociação seria válida a todos os trabalhadores de uma empresa ou conduzida caso a caso?

Há a possibilidade de o trabalhador negociar a perda de alguns direitos diretamente com o patrão, mas a previsão, na maioria dos casos, é de negociação por meio do sindicato, com validade para toda a categoria.

6. Direitos como férias, FGTS , 13º salário e seguro desemprego estariam ameaçados, poderiam ser negociados?

A reforma diz que os trabalhadores podem negociar tudo, menos alguns dos direitos do artigo sétimo da Constituição Federal. Fala que tem que ser observado o limite de duração do trabalho da Constituição, mas permite jornada de 12h e “banco de horas” anual. Prevê possibilidade de negociação para parcelamento de férias, décimo terceiro, supressão de intervalo, o que significa que haverá sim supressão dos direitos garantidos na Constituição.

7. Como fica o parcelamento das férias? A escolha pode ser do empregado ou o chefe a determina?

É o patrão quem determina. O parcelamento poderá ser feito em até três períodos, mas nenhum deles poderá ser menor que cinco dias corridos ou maior que 14 dias corridos. Hoje, a CLT permite que as férias sejam divididas apenas em dois períodos, nenhum deles inferior a dez dias

8. O trabalhador pode ser demitido e recontratado para ganhar menos?

Em tese, não poderia. Tem uma norma na CLT que diz que o empregado não pode se sujeitar a uma condição pior do que ele já tem. Mas a ideia do projeto é que os trabalhadores contratados a prazo indeterminado sejam terceirizados ou atuem sob esse modelo de trabalho intermitente. E isso poderá acontecer, porque essa regra depende de interpretação. Então, é evidente que não haverá a criação de novos postos de trabalho, mas a transformação de trabalhos seguros em precários.

9. Como se daria a precarização?

De vários modos. Tem uma previsão que diz que o trabalho em tempo parcial, por exemplo, que hoje é de até 25h por semana, pode ser feito por até 36h por semana, com possibilidade de hora extra. Então, veja, porque a empresa contratará um empregado para trabalhar 44h com o valor integral do salário, se é possível contratá-lo por 36h e ainda contar com o acréscimo das horas extras? A exigência pode ser a mesma, em condições trabalhistas inferiores.

Digo isso porque no regime de trabalho parcial o cálculo para pagamento é feito com base nas horas trabalhadas, ou seja, não se garantirá nem o salário mínimo. O mesmo vale para as horas extras, que terão base de cálculo menor. Isso rebaixa a condição de trabalho e afeta a vida desse trabalhador, que vai ter que trabalhar mais para manter a mesma renda.

10. E sobre a terceirização? É verdade que os terceirizados terão os mesmos direitos dos trabalhadores contratados diretamente?

Não é verdade. Se terceirizado, o empregado deixa de ser contratado diretamente pela empresa tomadora de serviços e passa a ser pela prestadora de serviços. Com isso, fica sujeito às condições de trabalho da terceirizada, com outro salário, outra participação sindical.

Outro problema grave é que esses contratos de terceirização geralmente se renovam a cada dois ou três anos. Então, é possível que o contrato formal se rompa quando o trabalhador estiver para fruir de suas férias. Isso faria com que outra prestadora assumisse a contratação, dando início a uma nova contagem de tempo de serviço. Isso, muitas vezes, implica em redução do salário, que volta a ser o inicial, e perda da fruição das férias. Em um estudo que fizemos em Brasilia, conversamos com terceirizados que estavam há mais de dez anos sem fruir férias.

11. Se o empregado for despedido sem justa causa e sem nenhum tipo de acordo com o empregador, os direitos atuais como 40% de multa sobre o FGTS, saque de 100% do FGTS e seguro desemprego permanecem?

Depende. Em tese, permanecem. Mas a reforma está prevendo uma possibilidade de acordo entre empregado e empregador, como se o trabalhador concordasse em ser despedido e, nesse caso, receberia tudo pela metade e não retiraria o seguro desemprego. É chancelar fraude.

12. É verdade que a reforma trabalhista tende a reduzir o desemprego?

Não existe no mundo estudo que demonstre criação de postos de empregos através da redução de direitos sociais. Se estivéssemos falando de redução de jornada, por exemplo, aí sim poderíamos pensar em aumento de postos de trabalho. Uma empresa que trabalha 24 horas diárias precisa de quatro empregados para dar conta de um dia de trabalho. A reforma, no entanto, autoriza tomar trabalho por 12 horas, sem intervalo. Então, a empresa precisará de apenas dois empregados para cumprir as mesmas tarefas, entende? Hoje, que são regulamentadas oito horas de trabalho, seriam necessários três empregados. Então, não tem como gerar posto de trabalho. O que vai ocorrer é uma migração de trabalhadores hoje contratados diretamente para moldes de trabalho intermitente, terceirizado ou em tempo parcial.

13. Será mais difícil para o trabalhador reivindicar seus direitos na justiça?

Muito mais difícil. A reforma prevê, por exemplo, que caso o trabalhador não consiga comparecer a audiência, tenha que pagar custas para renovar a ação. Estabelece também a chamada sucumbência recíproca em processos judiciais. Por exemplo, se o trabalhador reivindicar doze direitos contra a empresa e ganhar somente cinco deles, terá que pagar custas e honorários à empresa referente às reivindicações que perdeu.

Isso é um desestímulo para que o trabalhador vá para a Justiça do Trabalho, porque as provas muitas vezes são difíceis e tornam o processo arriscado. É o caso dos pagamentos por fora, muito comuns, e cuja prova é extremamente difícil para o trabalhador.

14. A modernização da lei é outra defesa dos apoiadores da reforma. Ela procede?

A lei não é antiga, a CLT já foi muito modificada. Ela não chega a ter 100 artigos com redação original de 1943, basta olhar o texto e suas alterações. Além disso, como falar em modernização se a terceirização era uma prática do século XIX e foi tolhida justamente porque precarizava demais as condições de trabalho, gerando doenças, prejudicando o consumo?

Do mesmo modo, a remuneração por produção é algo antigo, também superado em face dos prejuízos individuais e sociais que causa. Hoje, todo mundo voltou a ser remunerado por metas e a reforma refere que os pagamentos de prêmios e abonos não serão mais considerados salário, o que significa que não irão gerar contribuição previdenciária, refletir no FGTS, gratificação natalina ou férias. Essa prática de remunerar por produção foi superada justamente pelo reconhecimento de que se o empregado não tem previsibilidade do que ele vai ganhar, ele não consome a médio e longo prazo, o que também é ruim para a economia do país.

15. O que é contribuição sindical?

É a contribuição obrigatória, que o empregador tem que reter do salário do empregado (um dia de trabalho por ano) e repassar ao sindicato. É uma forma de atrelar o sindicato ao Estado, por isso é uma medida que recebe críticas. A questão é que uma alteração legislativa sobre esse tema deve ser amplamente discutida com a sociedade e com o sindicato, no âmbito de uma reforma sindical. E não ser introduzida como uma espécie de moeda de negociação na reforma trabalhista. E mais: para discutirmos o fim do chamado imposto sindical é preciso discutir garantia de emprego, redução de jornada, aumento de salário, que são as condições de possibilidade da própria organização sindical.

16. Os professores podem ser afetados com a reforma trabalhista?

Sim. A permissão à terceirização faz com que uma escola possa contratar professores por meio de uma outra empresa ou cooperativa, o que seria um modo de não criar vínculo empregatício direto, de pulverizar a classe dos professores, impedindo lutas comuns por meio do sindicato, reduzir salários, etc. Aliado à reforma do ensino público, com a autorização, por exemplo, para contratação de profissionais que sequer tenham formação acadêmica específica, precariza ainda mais uma atividade que já vem sendo maltratada em razão dos baixos salários e das péssimas condições de trabalho.

Além disso, uma lei que piora a vida dos trabalhadores impacta toda sociedade, pois estimula a violência, impede o convívio familiar saudável, circunstâncias diretamente relacionadas ao trabalho em sala de aula

17. Existem países que adotaram leis semelhantes às apresentadas pela reforma?

Os países da Europa já enfrentaram reformas trabalhistas, mas nenhum deles teve algo semelhante como a que está sendo proposto no Brasil. A Itália, por exemplo, teve uma reforma em 2012 e mais um conjunto de decretos em 2015 que flexibilizava a legislação. A diferença é que eles estavam em um patamar muito mais avançado do que o nosso e ainda assim a flexibilização foi menor do que a proposta aqui.

18. Por que em países desenvolvidos existem menos direitos trabalhistas do que em países subdesenvolvidos? 

Este é um dado falso. Países como a Alemanha ou Estados Unidos possuem uma história de regulação diferente, muita coisa é definida com os sindicatos em negociações coletivas que, sobretudo, preservam e majoram direitos sociais. A lógica é invertida. Nesses países há mais direitos sociais trabalhistas do que no Brasil, a começar pelas espécies de garantia contra a despedida.

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