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Opinião

Rompendo os grilhões: por uma educação pela memória e pela liberdade

O 7 de outubro será um dia para lembrar que um dos projetos em disputa pertence àqueles que acham que os negros nunca deveriam ter sido libertos

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Festa da Congada e Moçambique de Piedade do Rio Grande. Crédito: divulgação|Grupo|Cortejo de Ingoma. Créditos: Reprodução ||
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Por Táscia Souza

As mãos se alternam, três toques por compasso, em batidas fortes bem no centro do couro do tambor, enquanto os versos que ressoam cantam do “sopro de um canto guerreiro”, que “arrancado, rodou mundo inteiro,/ chicote gritou, não se pôs de joelhos,/ firmou seu reinado em solo estrangeiro./ Esse povo, minha dor”. Sempre sinto o pensamento parar por um instante ao som dessas palavras, assim como dos versos-irmãos da segunda parte da música, que entoam que “quando o sangue se viu misturado,/ juntado num só, renasci brasileiro,/ reinado em chão de Congado mineiro./ Esse povo, minha cor”.

Há um sentido de ancestralidade, e também de reverência, que faz os dedos apertarem a baqueta com um pouco mais de força. Os mesmos dedos que, no dia a dia do trabalho na Confederação Nacional dos Trabalhadores em Estabelecimentos de Ensino — Contee, arrancam um outro tipo de som das teclas do computador ao escrever sobre educação. Os mesmos dedos que, no dia 7 de outubro, apertarão as teclas da urna eletrônica numa das eleições mais tensas — e mais emblemáticas — da história do país, pelo menos desde o pleito de 1989, o primeiro depois da redemocratização.

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No mesmo domingo, o sétimo dia do décimo mês, a Igreja Católica celebra a devoção a Nossa Senhora do Rosário, a padroeira dos homens pretos, a quem, juntamente com Santa Efigênia, São Benedito e Nossa Senhora das Mercês, dedicam-se aos festejos do Congado. É a essa manifestação cultural que se refere a canção “Sangue de bantu”, cujos versos citei, composta pelo músico e arranjador juiz-forano Lucas Soares, coordenador do Ingoma, grupo de tambor mineiro que se dedica há dez anos à pesquisa dessa tradição e suas expressões de resistência no interior de Minas Gerais. A herança vinda com o povo banto, ao qual pertencia grande parte dos negros trazidos à força como escravos para o Brasil, sobretudo para a Região Sudeste, foi aqui misturada a elementos ibéricos, transformada, transfigurada, ressignificada. Seu sentido vital, porém, permanece entre a lembrança do cativeiro — que não pode jamais ser esquecida — e a exaltação à liberdade, pela qual a busca, infelizmente, passados 130 anos da abolição, não terminou.

Há algo de simbólico no fato de as eleições de 2018 caírem no dia de Nossa Senhora do Rosário, num momento que fala muito — e também cala fundo, pois é isso que está em pauta — sobre liberdade e igualdade. Não existe nenhuma conotação religiosa nessa constatação. O Estado é, e deveria continuar sendo, laico. A educação pública é, e deveria continuar sendo, laica. O Ingoma, embora beba da fonte de um ritual religioso e faça isso com toda a licença poética, todo o respeito e toda a deferência a essa expressão tão própria do legado afrobrasileiro e àqueles que são seus herdeiros e detentores legítimos, é um grupo musical, artístico e de pesquisa cultural laico.

A Senhora do Rosário de quem os congadeiros são devotos, contudo, não deixa de invocar uma imagem de que o 7 de outubro será um dia para lembrar que, ainda hoje, nas urnas, um dos projetos em disputa — ou, talvez, até mais de um — pertence àqueles que acham que os negros nunca deveriam ter sido libertos. Dia de recordar que os golpes que a democracia e a educação têm sofrido nestes tempos sombrios também afetam as manifestações culturais e artísticas que sobrevivem de forma independente e podem continuar afetando, a depender do resultado. Que o congelamento de investimentos públicos pela Emenda Constitucional 95, que inviabilizou o cumprimento das diretrizes e metas do Plano Nacional de Educação, é o mesmo que coloca em xeque a preservação do patrimônio cultural no Brasil, material e imaterial. Que a excludente reforma do Ensino Médio, que rebaixa a formação e visa ao desmanche da escola pública, é a mesma que põe em risco a conquista da Lei 10.639/2003, que inseriu o ensino de História da África e das culturas africana e afrobrasileira — cultura que está no cerne da pesquisa do Ingoma e das guardas de Congo e Moçambique no interior de Minas — no currículo da educação básica. Que as tentativas de censura e intimidação ao magistério, sintetizadas no movimento Escola Sem Partido e suas Leis da Mordaça, banham-se do mesmo ultraconservadorismo discriminatório que criminaliza expressões artísticas e socioculturais, sobretudo de matriz afrobrasileira.

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Da arte à educação

O interesse inicial do Ingoma foi a expressão artística. No entanto, como relata Lucas Soares, ao logo desses dez anos, a pesquisa o tem aproximado — e todo o trabalho do grupo — ainda mais do cerne dessa cultura herdada dos povos bantos. Proximidade que se dá também com aqueles que hoje a representam: as populações ribeirinhas, os congadeiros, os ternos de Congado e as guardas de Moçambique — como se denominam os coletivos que realizam os cortejos nas festas em homenagem a Nossa Senhora do Rosário e de coroação dos Reis Congos.

Isso não está destituído de um compromisso profundo com a educação. Nas oficinas de tambor mineiro que o grupo mantém e que, semestralmente, abrem cerca de 70 novas vagas para interessados a partir de 14 anos, boa parcela dos alunos é composta por professores, da educação infantil ao ensino superior, da linha pedagógica tradicional à antroposófica e à montessoriana, do setor privado à rede pública. Muitos em busca, possivelmente, de algo que diversas vezes, embora não careça na teoria, deve faltar na prática escolar: o direito de um povo de conhecer sua própria história. E história, aqui, no sentido benjaminiano, que não distingue os grandes acontecimentos dos pequenos e defende que somente a humanidade redimida pode se apropriar totalmente do seu passado. Ou no sentido brechtiano, que encena o “lá e então” para refletir sobre e interferir no “aqui e agora”. O que é o Congado, afinal, senão essa encenação de resistência? Resistência que/de quem existe — e insiste —, sentimento imprescindível à educação num momento em que resistir é preciso para que viver, neste país, continue a ser possível.

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Para além das oficinas de tambor, dois exemplos merecem destaque dentro do grupo de apresentação do Ingoma: o de Virginia Queiroz, professora de língua portuguesa e diretora da Escola Estadual Clorindo Burnier, na Zona Norte de Juiz de Fora, e o de Cecília Porto, professora de história, que dá aulas no Centro Socioeducativo, voltado para adolescentes em conflito com a lei, e na Escola Estadual Ana Salles, ambas as instituições também localizadas na Zona Norte da cidade. Para Cecília, a tarefa de fazer dialogar a realidade dos estudantes para os quais leciona e a tradição do tambor mineiro e do Congado não é fácil, uma vez que, por mais que seja uma expressão cultural própria dos antepassados de muitos de seus estudantes, o processo histórico de apagamento dessa cultura, ao menos no município da Zona da Mata mineira, faz com que eles mesmos não a reconheçam como sua.

Grupo de Ingoma na Escola Estadual Ana Salles, zona norte de Juiz de Fora

Segundo a professora, no entanto, a imersão nesse conhecimento tem feito com que ela mesma se relacione de maneira diferente com as expressões musicais que fazem parte da identidade de seus alunos — e que sintetizam as formas mais contemporâneas de manifestação afrobrasileira —, como o rap, o hip hop e o funk. De todo modo, é significativo o interesse despertado pela intervenção feita pelo Ingoma, por intermédio de Cecília, na Escola Estadual Ana Salles, na periferia da cidade, no último dia 22 de setembro (mesma data em que o grupo também esteve na Escola Estadual Duque de Caxias, na região central, a convite de outra professora, ex-aluna das oficinas). Se, no princípio, algumas crianças, participantes do projeto de educação integral para a primeira etapa do ensino fundamental da Escola Ana Salles, pareciam até arredias, bastaram os primeiros batuques dos tambores e chacoalhar dos patangomes (tipos de chocalhos de mão feito artesanalmente a partir de latas de biscoito) levados pelo grupo e colocados à disposição delas para que seus olhos brilhassem. Os de Cecília também.

“O termo ‘cultura popular’ é normalmente utilizado para designar manifestações culturais de setores marginais da sociedade, comunidades que são frequentemente rotuladas como ‘carentes’ ou ‘esquecidas’. Normalmente se dá em espaços não formais, desvalorizadas pelas elites, uma vez que se aproxima com o senso comum, sendo desprezadas pela comunidade científica. A escola é modelo de reprodução dessa lógica, raramente validando os conhecimentos e saberes que vêm desses setores. É fato que a escola sempre teve dificuldades em lidar com a diversidade de experiências e mesmo de conhecimentos diferentes daqueles considerados acadêmicos. Em vez de incentivá-los, faz o contrário: tende a silenciar, neutralizar e padronizar indivíduos que trazem consigo as mais diferentes visões de mundo e de relações sociais”, aponta Virginia Queiroz.

“Assim, quando trazemos para dentro do ambiente escolar uma manifestação tradicional, sincrética como é o tambor mineiro, conseguimos derrubar as paredes da homogeneidade, do ‘engessamento’ dos saberes; adquirimos novos. Compartilhamos as experiências, a sonoridade, o ritmo e, através deles, reconstruímos nossa visão de mundo e da sociedade. Para além da simples construção do saber, incorporar à realidade escolar manifestações culturais legitimamente brasileiras, regionais, tradicionais, torna a escola um centro de disseminação e de preservação dessas manifestações. Garante que todo aquele conhecimento ancestral não se perderá. Os ganhos são imensos: crianças e jovens aprendem ritmos, aprendem o respeito aos seus antepassados, aprendem a preservar a cultura nacional. Os professores e funcionários se sentem incluídos no processo de ensino e aprendizagem e aumentam sua motivação. A comunidade escolar ganha um espaço de construção social, de debate e inclusão.”

O desafio de preservar a memória

Manter essa cultura viva, sobretudo como política educacional, é um desafio que se impõe. Em Piedade do Rio Grande, município mineiro que o Ingoma visitou em maio, especialmente para participar da festa da Congada e Moçambique, tem-se colhido o resultado de um trabalho visceral com as crianças da comunidade. Conforme o congadeiro Romário Tomé, pelos primeiro estatutos da associação da Congada e Moçambique, ela deveria ser formada apenas por homens negros, com idade mínima de 15 anos. “Acredita-se que seria uma mentalidade da época, mas se conservou essa regra até 1996, quando, por influência do capitão e do presidente regente, permitiram que alguns meninos de 5 e 6 anos participassem do Congado, acompanhando seus pais. Essa abertura chamou a atenção, já que o terno tinha envelhecido muito, e atraiu mais e mais crianças. Hoje podemos ver que o terno é formado, em sua maioria, por elas.”

A medida inclusiva tornou-se essencial para a própria preservação cultural do Congado na cidade. “As crianças são o principal incentivo para que o grupo não se desfaça. São guardiãs das tradições ensinadas, incentivadoras de todas as iniciativas e zeladoras de tudo que diz respeito ao grupo”, diz Romário. “Infelizmente, muito pouco é incentivado pelas políticas ou iniciativas da cidade… É realmente um estímulo criado dentro delas pelo carinho e admiração que sentem. Ouvi de um dançador mirim de apenas 8 anos: ‘Dançar Congada é coisa que vem do coração… É de graça” .

Um dos responsáveis por esse trabalho é Felipe Teodoro, capitão das guardas de Congo e de Moçambique de Piedade do Rio Grande. “Jonathan [o outro capitão da Congada de Piedade] e eu estamos dando continuidade a um trabalho que começou com o pai dele, antigo capitão da Congada, de manter e incentivar a participação das crianças. Para mim, é extremamente importante a presença delas em nosso meio. Jonathan e eu fazemos questão de que elas venham dançar, aprender um pouco mais da história da Congada e também se encontrar em nossas raízes”, conta Felipe.

Cortejo de Ingoma. Créditos: Reprodução

“Quando comecei a dançar era bem mais difícil esse processo, porque não aceitavam muitas crianças. Então, dá para contar nos dedos quantos ainda fazem parte desde a infância. Quando meu falecido pai me levou pela primeira vez, eu estava com meus 4 anos de idade e, graças a Deus, estou firme no grupo até hoje. Costumo dizer para meus congadeiros que só saio depois de morto, como meu pai fez. A Congada faz parte da minha vida, e tenho amor por ela. O trabalho com as crianças é exatamente esse: dar continuidade a essa história e a essa arte chamada Congada. Temos muitas crianças em nosso grupo e a tendência é aumentar a cada ano, pois uma vai incentivando a outra, seja na escola, na rua e, principalmente, em casa.”

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A proposta tem a ver com a educação como instrumento de retomada dos valores históricos e culturais de um território. As memórias da escravidão e da liberdade nas festas da Congada e Moçambique de Piedade do Rio Grande, de 1873 a 2015, são tema da tese de doutorado da historiadora Lívia Monteiro, da Universidade Federal Fluminense (UFF), intitulada “A Congada é do mundo e da raça negra”. É de Lívia também a coordenação da pesquisa que embasou o documentário “Dos grilhões aos guizos: festa de maio e as narrativas do passado”, dirigido por Natália Ferraciolli. O título faz referência às tornozeleiras de guizos que os dançadores trazem atadas nos pés, tais quais as gungas (chocalhos de pé feitos de lata) usadas pelos ternos de outras localidades, como a guarda de Moçambique do município mineiro de Passatempo.

O instrumento é citado numa das cantigas da tradição entoadas pelo Ingoma: “No tempo do cativeiro,/ quando o feitor vinha me bater,/ eu batia com a força da fé minha gunga no chão./ Aí a poeira subia,/ aí o feitor não me via,/ porque eu virava pó”. Tanto em Piedade quanto em Passatempo, os dançadores-músicos trazem os tornozelos atados como seus antepassados, mas, diferentemente deles, não são grilhões que os aprisionam. Ao contrário: com as gungas ou os guizos amarrados às pernas, seus passos — e suas vozes — são magicamente livres. Como toda educação deveria ser.

Táscia Souza é jornalista da Confederação Nacional dos Trabalhadores em Estabelecimentos de Ensino (Contee), doutora em Estudos Literários pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) e integrante do grupo de tambor mineiro Ingoma

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