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Opinião

Por que a publicidade infantil é antiética

As crianças não têm condições de interpretar criticamente as mensagens publicitárias e são assim manipuladas por elas

Crianças assistindo tv
A publicidade cria anseios e necessidades que não são reais em crianças Crianças
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A publicidade infantil, isto é, aquela que fala diretamente com as crianças menores de 12 anos de idade é intrinsecamente abusiva, pois fere os valores humanos mais relevantes à nossa sociedade. E flagrantemente antiética, porque viola o conceito do que seria uma vida boa para e com outrem em instituições justas.

Ela cria anseios, vontades, necessidades que não são reais em crianças, um público cuja capacidade cognitiva está em formação.

Direcionar mensagens comerciais a pessoas que não têm condições de interpretá-las criticamente ou mesmo de analisá-las de forma consistente é, sem dúvida, uma forma de manipulação com o único objetivo de obter ganhos pecuniários.

Anunciar para crianças é como enriquecer ilicitamente. Dizer para as pequenas que precisam de toda a coleção de bonecas ou para os pequenos que não serão aceitos no grupo se não tiverem o relógio e a sandália que brilha equivale a falar que somente terão amor, felicidade, se consumirem esses produtos. Produtos que na próxima semana já serão trocados por novos lançamentos, em uma corrida consumista sem fim.

O que para o mercado alegadamente parece exagero não é. Pode ser difícil para alguns adultos compreenderem os danos advindos do direcionamento das mensagens publicitárias ao público infantil, mas o que se deve ter em mente é que as crianças realmente acreditam no que a publicidade diz a elas.

Daí ser imprescindível que haja uma efetiva e rigorosíssima limitação da publicidade voltada aos menores de 12 anos por parte dos Poderes da República, sob pena de se ter um comportamento antiético validado pelas instituições responsáveis justamente por cuidar da proteção e garantia dos direitos das crianças.

A alegação dos setores publicitário e anunciante de que qualquer restrição à publicidade, mesmo a que fala diretamente com os pequenos, implicaria censura a uma atividade artística não tem cabimento.

Primeiro porque a atividade publicitária, diferentemente da jornalística, não tem guarida do dispositivo constitucional que garante a liberdade de expressão do pensamento. Trata-se de uma atividade com finalidade venal, é ato comercial. E sua garantia constitucional é outra, é a da Ordem Econômica.

Segundo, porque ainda que se entenda ter a publicidade um pouco de atividade artística, mesmo assim seria passível de limitação, pois a liberdade de expressão do pensamento, como todas as outras garantias e direitos, não é absoluta e pode ser limitada se ferir a dignidade ou os direitos fundamentais.

Não fosse assim, poderíamos ter diariamente em nossos jornais artigos atentatórios à honra das pessoas e obras de arte ofensivas aos direitos humanos. Assim, o direito da criança de crescer e se desenvolver livre e com plenitude de garantias, como o bem-estar físico e psicológico, pode ser limitador da livre expressão.

Outro argumento constantemente utilizado pelo mercado é de que a responsabilidade pelo cuidado e pela proteção das crianças no âmbito do consumo e da comunicação mercadológica seria exclusivamente dos pais e responsáveis.

Ora, que os pais e responsáveis formam o núcleo familiar das crianças e têm o dever de garantir educação, bem-estar, alimentação e saúde a seus filhos ninguém questiona. Certamente são eles a principal referência das crianças e, por isso, têm a obrigação de garantir esses direitos.

Porém, é igualmente pacífico que o Estado e a sociedade proporcionem a essa família as condições adequadas para que possa cuidar de seus filhos da melhor maneira possível. Por isso, o Estado tem sim o dever – e não só o direito – de atentar para questões que digam respeito às crianças, como é o caso do abuso publicitário e mercadológico constantemente dirigido a elas.

Da mesma forma, o Estado é responsável pela garantia do acesso à educação formal de crianças e adolescentes, por um serviço de saúde adequado etc. É o que chamamos de responsabilidade compartilhada, prevista no artigo 227 da nossa Constituição Federal.

Também alardeia o mercado que no mundo de hoje, repleto de apelos de consumo em todos os lugares, o tempo todo, seria impossível deixar as crianças de fora, e que a publicidade a elas dirigida na verdade as ajudaria, pois proporcionaria um aprendizado de como lidar com questões de consumo desde muito pequenas.

Contudo, cabe aqui uma reflexão cuidadosa. Será que por a sociedade ser como é, não devemos querer melhorá-la ou questioná-la? Será que simplesmente aceitar que a criança está exposta a apelos mercadológicos é a melhor forma de lidar com essa questão?

O fato de o mundo contemporâneo ser um tempo de consumo e cercado de ações agressivas de marketing não significa que isso é bom. Muito menos que deve assim permanecer. Ou que devamos ensinar nossas crianças a gostar desse mundo sem fazer nenhuma reflexão crítica a propósito.

Porém, se as crianças forem inseridas na lógica do consumismo desde a mais tenra infância, quando alcançarem a adolescência e tiverem, portanto, mais condições de avaliar tudo isso, talvez não o façam por não lhe ter sido garantido o direito de crescer livre desse assédio mercadológico.

Dizer, repetir, mostrar incessantemente que o combo alimentar repleto de gordura saturada, açúcar e sódio vem com “brinquedos exclusivos colecionáveis” em promoções que mudam a cada mês é o mesmo que chamar as crianças a comer, comer, comer. O resultado? No Brasil já se contabiliza 30% da população infantil com sobrepeso e 15% com obesidade. Caminhamos para os índices alarmantes das nações que mais consomem em todo o mundo.

Chamar meninas de quatro anos para se vestirem como miniadultas, maquiadas e de salto alto, é uma violência. Também é uma violência dizer que a criança não é nada se não tem o tênis, o boné, a bermuda, o blusão da marca “X”. São violências simbólicas que geram violências reais.

A erotização precoce pode redundar em questões bem mais complexas, assim como a violência real muitas vezes é causada por objetos de desejo. E são os crimes patrimoniais que estão no topo da lista dos mais cometidos pelas crianças e adolescentes que já estão dentro do sistema legal.

De fato, no mundo do consumo já foi mais importante ter do que ser. Hoje já se pode dizer que o ter deu lugar ao parecer ter. Vivemos em mundo de aparências. As crianças exigem proteção. Elas não devem se preocupar com as marcas do que vestem, em parecer sensuais precocemente, ou em comer para ganhar os brindes e fazer regime para emagrecer dos excessos cometidos.

A elas deve ser garantida a proteção integral, em sua absoluta robustez, e o direito de brincar livremente. Para que, assim, seja-lhes propiciada uma vida boa para e com outrem, em instituições justas, garantindo-se, com isso, a ética na relação dos adultos com os pequenos.

* Isabella Henriques é advogada e coordenadora do Projeto Criança

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