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Opinião

O negócio dos quadrinhos

Ao sinalizar interesse na compra de clássicos adaptados, o governo pauta as editoras e desperdiça o que há de melhor nas HQs, a sua produção independente

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Não é algo explícito, mas há uma espécie de recado sugerido pelo governo federal às editoras brasileiras interessadas em ter obras incluídas nas gordas compras do Programa Nacional Biblioteca da Escola (PNBE). A sugestão dada é que inscrevam clássicos da literatura universal adaptados na forma de histórias em quadrinhos. Há chances reais de um livro nesses moldes ser selecionado.

A opção por dar destaque a adaptações literárias vem desde 2006, data em que os quadrinhos foram incluídos nas listas do programa, que tem por objetivo compor acervos de bibliotecas escolares públicas em todo o País. Neste ano, das 28 obras em quadrinhos compradas pelo PNBE para ser distribuídas, 61% são versões de clássicos.

A lista de adaptações que chega às escolas públicas é ampla. Vai de romances brasileiros como O Guarani e Dom Casmurro a clássicos universais, casos dos shakespearianos Otelo e Hamlet. A Ilha do Tesouro, não se sabe por que, teve duas adaptações selecionadas, cada uma delas produzida por editoras diferentes.

Do ponto de vista comercial, as editoras já perceberam que há aí um bom negócio. De poucos pares de adaptações existentes em 2005 o mercado saltou para cerca de quatro dezenas ao ano. O principal dado a ser observado é que tais publicações não têm apenas como leitor imediato o interessado em literatura ou o apreciador de histórias em quadrinhos. As listas governamentais de fomento à leitura parecem ser o público-alvo majoritário.

A inclusão de uma obra no PNBE, seja ela em quadrinhos ou não, garante uma venda direta bem superior à tiragem inicial dos livros, que varia entre mil e 3 mil exemplares. Os números costumam saltar para a casa dos dois dígitos.

A questão que se coloca é analisar esses mesmos dados à luz dos pontos de vista que realmente interessam a programas desse porte. Se analisados sob os ângulos do fomento à leitura literária e da inclusão de quadrinhos em acervos de bibliotecas públicas, os critérios utilizados na seleção são bastante questionáveis.

Parte da raiz do problema está nos próprios editais do PNBE, destinados às editoras interessadas em inscrever obras para o programa. O texto associa as histórias em quadrinhos à literatura, sem deixar clara, porém, a natureza dessa aproximação. Outro senão é a tendência de sinalizar que obras quadrinizadas devam ter como conteúdo versões de clássicos.

É o que ocorre, por exemplo, no edital deste ano, destinado a compras de acervo para 2014. Na categorização das obras para alunos dos anos iniciais do Ensino Fundamental e para Educação de Jovens e Adultos, o texto especifica haver interesse na aquisição de quadrinhos, “dentre os quais se incluem obras clássicas da literatura universal”. Pergunta-se: por que há a necessidade de os quadrinhos versarem sobre clássicos literários? Tais publicações não configuram uma leitura válida per se? O edital e os resultados das compras sugerem alguns caminhos de resposta.

A primeira resposta é que se prioriza o conteúdo literário presente nos quadrinhos, e não apenas os quadrinhos em si. É como se estes fossem usados apenas como ferramentas para instar o aluno ao livro romanceado em que a obra foi baseada. Um sinal claro disso é a sistemática presença de adaptações nas listas compradas pelo governo.

A segunda resposta que o texto do edital do PNBE sugere é que os quadrinhos são vistos como uma linguagem mais atraente, possivelmente por conta da mescla entre palavra e imagem, que pode ser uma porta de entrada para o texto literário.

Trata-se de descoberta tardia. Faz quase cem anos que os quadrinhos são o primeiro contato que muitos jovens têm com as letras. Há gerações que cresceram lendo revistas como “Pato Donald”, “Mônica” e “O Tico-Tico”, para ficar em três casos.

Se os quadrinhos são uma porta de entrada, por que não optar pelo que eles têm de melhor, ou seja, sua produção autônoma? Há mais oferta de conteúdo entre o rol de obras em quadrinhos vendidas em bancas e em livrarias do que nas adaptações literárias em si, muitas delas de qualidade discutível e que trazem o sério risco de apresentar ao estudante uma narrativa diversa do texto-fonte.

Consequência disso tudo, e de triste registro, é evidenciar que os quadrinhos estão sendo mal utilizados para contornar a inabilidade de se estimular a leitura dos clássicos literários, algo insubstituível. É só ler uma adaptação em quadrinhos e compará-la com seu romance original para perceber que se trata de obras completamente diferentes, embora ancoradas num mesmo enredo.

Apesar da necessidade de ajustes, há de se louvar a iniciativa do governo federal de compor bibliotecas escolares. Há de se elogiar também a inclusão tardia de títulos em quadrinhos nos acervos e de sinalizar que estes possam compor uma forma válida de leitura – por mais óbvia que possa ser essa constatação, ela ocorre com atraso de décadas no País.

Trata-se de um inegável avanço a inclusão de obras em quadrinhos em bibliotecas escolares e o estímulo à leitura delas, que historicamente foram vistas como produções infantis e de baixa qualidade. O que se sugere é uma revisão nas obras incluídas nos acervos e o descolamento delas das adaptações de clássicos literários.

Para isso, os editais deveriam aliar as compras de obras literárias originais, cuja leitura é necessária e insubstituível, à de outras, de cunho quadrinizado e também original e exemplar, sem a associação com versões dos clássicos, como ocorre no edital que selecionará as obras de 2014. Hoje, tais publicações são minoria no PNBE.

É necessário também que se oriente bem quem seleciona tais produções, priorizando pessoas versadas no tema. Do contrário, uma iniciativa bem intencionada vai alimentar um bom negócio editorial – as adaptações literárias – e privar alunos e professores dos bons conteúdos existentes em quadrinhos.

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