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Opinião

De espectador a sujeito

O que os jovens têm a dizer no campo cultural e como se organizam as políticas voltadas para a juventude nessa área

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||Foto: PIXABAY ||
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No universo das práticas culturais juvenis, chama atenção a pluralidade de formas de expressão existentes, que vão desde os modos de vestir e de consumo até os múltiplos espaços de sociabilidade e a própria diversidade de manifestações culturais. Talvez por essa pluralidade não nos caiba falar da juventude, mas das múltiplas práticas juvenis presentes em nossa sociedade. Sendo plurais, porém, o que nos permite identificá-las? O que elas apresentam em comum?

Além de seu forte vínculo com o cotidiano e com a ocupação do tempo livre, as práticas culturais juvenis são criadoras de identidades e chegam, inclusive, a consolidar novas formas de participação política e cidadã. Coletivos de hip-hop, grafite e audiovisual, grupos de rock, teatro e capoeira, bailes funk e rodas de samba ou mesmo os conhecidos “rolezinhos”, todos têm em comum a perspectiva do lazer e da diversão, alinhada, no entanto, a novas formas de relação com a cidade e com a ocupação de diversos espaços. A partir de vivências cotidianas, as chamadas “culturas juvenis” criam novos modos de participação para além dos canais tradicionalmente voltados à atuação política, como o movimento estudantil ou mesmo os partidos. De forma expressa ou não, elas acabam assim por reivindicar o direito à cultura.

Embora o Estatuto da Juventude, aprovado em agosto de 2013, inclua como direito à cultura “a livre criação, o acesso aos bens e serviços culturais e a participação nas decisões de política cultural”, historicamente as iniciativas voltadas para esse segmento estiveram pautadas quase exclusivamente pela garantia do acesso ao consumo cultural. A meia-entrada é um exemplo clássico desse tipo de política, ainda que esteja restrito apenas a estudantes e aos jovens de baixa renda e, mais recentemente, tenha sido limitado à cota de 40% dos ingressos em eventos culturais e esportivos.

Os direitos à criação e participação cultural estiveram relegados, o que ocultou a potencialidade do protagonismo juvenil no campo da cultura. Tal direcionamento pode ser entendido como parte do espectro mais amplo das políticas governamentais voltadas para a juventude. Considerados, na maior parte dos casos, como grupo de risco ou mero capital humano, os jovens têm sido contemplados apenas com iniciativas que permitam justificar os investimentos públicos, seja pelo viés social ou econômico. Constituem exceções as políticas que os entendem como sujeitos de direitos.

No âmbito da cultura, esse entendimento leva à promoção de iniciativas de valorização do protagonismo juvenil e de apoio a ações culturais autônomas, com ênfase na garantia do direito ao fazer cultural. Tais iniciativas, por sua vez, não se encontram desvinculadas do contexto geral das políticas culturais brasileiras, que sofreram enorme transformação, sobretudo, na última década.

Foto: PIXABAY Foto: PIXABAY

A ampliação da compreensão do que seja a cultura gerou impactos significativos no que é entendido como objeto das políticas culturais. Se a estratégia anterior baseava-se majoritariamente na promoção de iniciativas de democratização do acesso à fruição de expressões culturais consagradas, a ampliação do conceito de cultura possibilitou o surgimento de programas voltados ao reconhecimento e à valorização de manifestações culturais até então distantes das políticas governamentais. O apoio à ação cultural existente nos diferentes territórios e segmentos artísticos ­ganhou centralidade – incluindo-se aí as ações culturais da juventude.

O programa Cultura Viva, criado pelo Ministério da Cultura em 2004, foi uma iniciativa de grande relevância para a concretização dessa mudança. Não por acaso formulado inicialmente para contemplar o segmento juvenil, o Cultura Viva ganhou amplitude com a inclusão de populações de baixa renda, comunidades indígenas, rurais e quilombolas e agentes culturais, artistas, professores e militantes. Pautado pelos princípios da autonomia e do protagonismo cultural, ele possibilitou a participação de muitos jovens pelo País. Apesar de contar com algumas ações voltadas especificamente para os jovens – como o Agente Cultura Viva –, o programa esteve orientado mais ao apoio a instituições culturais com CNPJ (os chamados Pontos de Cultura) que a iniciativas não formalizadas, muito próprias desse segmento.

Paralelamente, no entanto, surge nesse mesmo período, na cidade de São Paulo, o Programa para a Valorização das Iniciativas Culturais (VAI). Criado em torno das discussões promovidas pela Comissão da Juventude da Câmara Municipal, o VAI permitiu o apoio a iniciativas culturais juvenis de regiões periféricas da cidade, com pouca oferta de equipamentos e recursos culturais.

Com a transferência direta de recursos a projetos elaborados pelos próprios jovens, o VAI acabou rompendo com diversos paradigmas, tornando-se modelo exemplar de política cultural para a juventude. Isso porque, ao incentivar iniciativas juvenis, ele desconstrói a lógica de que é preciso levar cultura à juventude e dá abertura à diversidade de práticas, linguagens e propostas existentes. Com isso, o jovem deixa de ser público-alvo de atividades promovidas por ONGs e/ou artistas profissionalizados, tornando-se protagonista de suas próprias ações.

O foco na democratização da produção cultural com o reconhecimento de jovens artistas destaca-se assim perante­ iniciativas voltadas, na maioria dos casos, à formação artístico-cultural. Estas não são, por isso, menos importantes e necessárias – em realidade, elas constituem a base para a fruição e para a produção cultural. Ainda assim, apesar de serem ambas estratégias complementares, a possibilidade de criar e gerir os recursos de forma autônoma dá maior consistência ao protagonismo juvenil.

A existência de políticas culturais voltadas à juventude tem permitido ainda transformar a própria relação desses segmentos com as instituições governamentais. Se, historicamente, grande parte da juventude encarou o Estado pela perspectiva da tomada do poder (por parte da militância institucionalizada) ou a partir de uma recusa total (por setores anarquistas), hoje ele aparece como agente garantidor de direitos e fomentador não só da arte e da cultura, como da participação social. Temos, portanto, um contexto de maior sincronia da sociedade civil e do poder público em torno da pauta da juventude. Resta, porém, a ampliação dessas experiências pontuais e localizadas para a formação de um projeto mais amplo de país, que leve em conta os jovens como sujeito de direitos.

Luciana Lima é nestre em Estudos Culturais pela Escola 
de Artes, Ciências e Humanidades da USP 
e assessora do gabinete da Secretaria 
Municipal de Cultura de São Paulo.

*Publicado originalmente em Carta na Escola

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